quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Biografia do Professor Ascendino Reis

Alguns aspectos biográficos do professor Ascendino Ângelo dos Reis
(falecido em 14 de setembro de 1926)
(retirado do livro Médicos de Outrora do prof. Rubião Meira da Faculdade de Medicina da USP, escrito em 1936/37).
              Entre os velhos professores da Faculdade de Medicina, destacou-se sempre pela sua atitude justiceira e pelo seu vasto saber o Ascendino Ângelo dos Reis.
              Era enciclopédico. Trabalhador como poucos. Ilustrado como professor, os alunos o achavam “cacete”, porque profundo e minucioso. Ensinava “farmacologia e arte de formular. Suas aulas tinham um cunho singular. Gostava que os alunos apresentassem objeções sobre o que ia discorrendo, o que fazia às vezes uma grande algazarra, tal o número de propostas, feitas não com o intuito de aprender, mas com o desejo de atrapalhar o mestre. As mais disparatadas coisas saiam em cena, e enquanto uns se ocupavam na discussão com o professor, outros distraiam-se, lendo jornais do dia ou mesmo jogando, habitualmente pôquer, falando alto, contando pilherias. Uma balburdia, em que se sentia, pelo menos, a vida da juventude, aliás desrespeitosa. Ficava aborrecido quando a aula era silenciosa – isto o incomodava demasiado, e por castigo repisava a matéria, fazia perguntas, desejando que a turbulência aparecesse. Esta era a vingança dos moços – manifestarem-se em silêncio, quebrando a linha habitual de barulho – coisas da mocidade, que é sempre a mesma, sempre impenitente.   
              Uma vez, em aula, quando prelecionando sobre os desinfetantes intestinais, anunciou que ia falar sobre os terminados em ol, como o salol, o benzonaftol, o betol... ao que um estudante gaiato interrompeu: “deve-nos falar, então, também sobre o sol”. Retrucou: “pois falarei sobre o sol” e por uma hora e meia discorreu, demonstrando conhecimentos profundos de astronomia sobre o astro-rei. Embasbacou a rapaziada que não mais entendeu provocar a ilustração do mestre.
              Suas aulas passavam sempre da hora; para ele o horário era uma ficção. Embrenhava-se no assunto e ia por ali afora. Era incansável. Uma feita, a mocidade revoltou-se e não compareceu à aula prática, a que se seguiria a dissertação oral. O professor, embora bondoso, irritou-se e marcou zero na turma toda, nota que representa grande castigo. Levaram os alunos a questão à Congregação. Os debates nesta foram intensos. O Dr. Ascendino Reis levantou-se antes do julgamento, tendo de defendido com raro brilho e posto a questão nas mãos de seus pares. Era uma questão melindrosa e se não fosse eu que tomei a defesa do Dr. Ascendino, na hora da resolução, não sei o que teria havido; no mínimo a saída daquele nosso ilustrado Colega da Faculdade, o que seria sem dúvida grande perda a se lamentar. Com o apoio do Dr. Edmundo Xavier pudemos vencer a questão e tudo continuou como dantes. Mas foi um momento desagradável aquele. Creio que em vida o Dr. Ascendino não soube da minha atuação naquele momento. Eu nada lhe disse e acredito que sempre me ignorou. Tratava-me, entretanto, com grande distinção e amizade, aquela amizade que se tem para com os novos. Devo-lhe palavras de entusiasmo que nunca esqueci.
              Quando fui nomeado professor de clinica propedêutica, dei a lição inaugural em presença de grande auditório, professores, alunos, representantes do governo, amigos. O Prof. Ascendino lá estava, abraçou-me e felicitou-me. Dois dias depois, a convite do Centro Oswaldo Cruz, fiz uma conferência no “Instituto Histórico e Geográfico” sobre o “Contingente brasileiro na evolução da medicina”.
              Terminada que foi, veio o Prof. Ascendino, que havia assistido, abraça-me e disse as seguintes palavras que guardei sempre no meu espírito e as revivo agora com gratidão: “Não sei a quem felicitar, se ao colega, se à Faculdade, tão brilhantes suas duas orações”. Para um moço que eu era naquela ocasião foi a maior conquista que eu havia realizado, receber a saudação sincera daquele Mestre, cheio de serviços à medicina, às letras e à ciência.
              Foi uma das forças que me impulsionou e me fez caminhar na senda do trabalho e do estudo.
              Dispunha o Dr. Ascendino de grande clinica, que só fazia a pé e de bonde. Nunca o vi de tilburi senão raramente nem de automóvel. Gostava de andar, e nos lugares em que se encontrava, estava sempre a ler. Não largava os livros. Estudava muito e sabia muito. Infelizmente não deixou escrito que demonstrasse a sua cultura rara em nosso meio. Tem sido este o nosso grande erro. Trabalhamos, estudamos e não deixamos aos posteros os resultados de nossas observações. É a luta pela vida que nos manieta, mais que o espírito egoístico. Vive-se muito intensamente na labuta diária e quando se se recolhe à tarde é para descanso e não para escrever, ou estudar. É penosa a vida do médico – e, ou trabalha muito e não tem tempo para outras cogitações, ou nada faz e a inércia física traz a inércia mental. Motivo é esse pelo que nossos mestres têm deixado poucos trabalhos por onde se possa avaliar de seu merecimento. Felizmente há exceções honrosas, que vêm para confirmar o que estou a dizer. Ascendino foi um desses. Estudou muito, ensinou sempre, observou constantemente e foi-se sem deixar escrito o que viu e o que sabia e não era pouco, ao contrário, era bastante. Foi médico da Cia. Inglesa e cuidava de todos os seus doentes com especial carinho. Depois que faleceu tenho entrado em casas em que ele era considerado até como membro da família e a recordação que se faz do clínico enche-me o ânimo de satisfação, pois que a sua figura é constantemente recordada e seus ensinamentos perduram.
              Deixou na Faculdade também a homenagem de apreço a seu reconhecido saber e ninguém ali esquece sua figura austera, de homem antigo, que não ria muito, falava constantemente de tudo e abordava com superioridade qualquer assunto. Formou-se também em Direito, mas nunca se dedicou ao exercício da profissão de advogado. Foi sempre durante a vida médico, e o foi também do exército, e professor. Antes de sê-lo na Faculdade o era na Escola Normal da Capital, onde prelecionava se me não engano sobre geografia e cosmografia, obtendo por concurso essa cadeira. Por essa rápida apreciação de sua vida fica em foco na medicina paulista a sua figura, como a de um verdadeiro sábio que honrou a ciência e soube interpretá-la, aplicando seus vastos conhecimentos para defender a saúde e praticar o bem. 


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Palestra do Professor Patrick Paul

Os diversos dados referentes à palestra e aos estudos do Professor Patrick Paul podem ser acessados no blog
www.cienciaetradicao.blogspot.com

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Mito e Modernidade - (Parte 2 da aula 3 do Curso Humanização da Medicina e seus Mitos)

Mito e Modernidade
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

O que passou-se a chamar de “Modernidade” foi decorrente de vários processos ocorridos entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Tais processos são decorrentes de outros anteriores, mas vamos nos deter aqui a partir desse período.
A Revolução Industrial e as novas configurações políticas em vários países conduziram a um novo desenvolvimento das cidades, com novas vivências e visões a partir do “urbano”.
A Ciência ainda não tinha se tornado propriamente “profissional”, mas tinha o apoio dos detentores do poder, de modo que se aprimorava.
A eletricidade, “descoberta” e nomeada por Gilbert no século XVI, ganhou um novo patamar após os trabalhos de Galvani no século XVIII.
A possibilidade de manipulação da eletricidade e seu poder sobre corpos mortos, entre outras proezas, impressionaram os estudiosos que passaram a creditar a esse fenômeno um dos meios de dominar a natureza, incluindo a morte. Assim, a eletricidade seria algo como uma “desafiadora das divindades” produtoras de “raios e relâmpagos”.
Concomitantemente a esses acontecimentos, a Medicina então praticada não pode ser tida propriamente como “popular”.
Ao nos reportarmos ao passado com uma nostalgia de uma Medicina próxima das famílias e de todo e qualquer cidadão, estamos parcialmente projetando em um passado longínquo algo que não fica tão distante no tempo.
Até o aparecimento das repúblicas modernas no século XVIII, o que vivia mais próximo da camada social menos favorecida da sociedade em termos de cuidados com a saúde eram mais frequentemente “curadores” e “cuidadores” de origem popular, mas não médicos de formação universitária. Estes serviam mais frequentemente à elite da sociedade.
Um dos marcos iniciais de um “cuidar médico formal dos cidadãos” ocorreu a partir de Pinel ter passado a cuidar de Salpetrière na última década do século XVIII. Pinel, Cabanis e outros iniciam um processo de aproximação da Medicina universitária com um “cuidar” de pessoas do povo. Devemos lembrar também do então “cirurgião-barbeiro” que tinha uma papel intermediário entre a Medicina universitária e os “curadores populares”.
Esse processo de aproximação do povo de uma “Medicina republicana” ocorreu aos poucos, já que o povo já estava habituado aos “cuidadores populares”.
Assim, talvez possa ser questionada uma nostalgia de uma “medicina humanizada” se isso disser respeito a um “cuidar de qualquer pessoa”. Seria essa uma nostalgia da Medicina propriamente dita ou seria uma nostalgia dos cuidadores?
    
Literatura
Acompanhando a Modernidade aprimoraram-se os processos industriais facilitadores da produção de livros. Assim, instalou-se uma Literatura de consumo e diversão, bem como de informação noticiosa, de modo que passaram a circular na sociedade conhecimentos e informações as mais variadas, promovendo uma “permeabilidade” entre as diversas camadas da sociedade e entre a Ciência e os leitores de livros e de notícias.
Essa produção literária foi um dos fatores que configuraram a Modernidade.

Fotografia

Em 1926 o francês Niepce, em 1933 o francês Florence radicado no Brasil em finalmente em 1935 o também francês Daguerre desenvolveram o processo de criação da fotografia.
A fotografia trouxe uma “nova imagem” e um “novo imaginário” ao cidadão da modernidade.
É interessante que três franceses tenham desenvolvido inicialmente a fotografia, pois a Paris do Barão Haussmann configurou-se na “cidade moderna” nos padrões do século XIX, na segunda metade desse século, onde a fotografia passou a captar as coisas “acontecendo” em um instante, um momento.
Devemos lembrar que uma das primeiras aplicações práticas da fotografia ocorreu a partir de 1854 com a foto da população carcerária para o fichamento de cada criminoso. Assim, esse foi um início de controle social “moderno” que posteriormente vai atingir também os outros indivíduos.
Assim se a fotografia traz uma “nova imagem” da pessoa, também implica em um novo “olho” da sociedade.
Esse processo na instância científica, em 1860 gerou o “mítico” conceito de “optograma”. O médico Dr. Vernois formulou a hipótese de que ficaria impressa na retina de uma pessoa morta a última imagem vista por essa pessoa. Assim, seria possível, a partir da “fotografia da retina”, descobrir a identidade de um homicida.
No transcorrer da segunda metade do século XIX aprimorou-se a anestesia e a antissepsia. Tais capacidades acompanharam o processo de “corrida contra o tempo” na Medicina.
É notório que na Paris do Barão Haussmann apareceram as primeiras ambulâncias, ainda sob tração animal. A cidade moderna passou a ser hostil ao cidadão e a entrar em conflito com ele, de modo que aumentaram acidentes decorrentes desse conflito, ao mesmo tempo em que aquelas técnicas citadas se instalaram.
Em 1864 o necrotério de Paris passa a ficar aberto ao público para visitação, de modo que adquire características intermediárias entre museu e teatro gratuito, na medida em que apresentava “personagens” criados pela imprensa moderna. Essa visitação que se revestia até mesmo de um caráter lúdico foi fechada em 1907, sob protestos.

Podemos ver um rápido apanhado do reflexo desses fatores em relação à Medicina em algumas obras desse período. Assim temos:

         Frankenstein (1818) -  Mary Shelley.

         Claire Lenoir (1867) - Villiers de L’Isle Adam.
Nesta obra o autor faz uso do conceito de optograma.

         O médico e o monstro (1886).
   - Robert Louis Stevenson.

         O Alienista (1882) -  Machado de Assis.

Vamos nos ater um pouco mais no que podemos chamar de “O Mito Moderno de Mary Shelley”.
Em 1818 Shelley escreveu “Frankenstein – O Prometeu moderno”.
É interessante notarmos que “o Prometeu moderno” é uma parte esquecida do nome da obra, mas que tem importante significado para entendermos a simbologia e a motivação dessa obra.
Na Mitologia Grega, Prometeu foi o responsável por fazer o homem de barro e por insuflar o fogo divino nesse ser, tendo sido punido por isso (e por outras causas também). Embora punido, tornou-se uma figura heróica para os humanos.
Já o Prometeu Moderno de Shelley, além de punido, fez uma criação que não deu certo.
Mary Shelley expressou em sua obra uma desconfiança do poder da Ciência.
Percy Shelley, escritor e marido de Mary, era um entusiasta da Ciência.
Já o pai (também escritor) de Mary não acreditava em ciência sem “benevolência”.
Humphry Davy (descobridor do potássio) e Erasmus Darwin (botânico) eram freqüentadores da casa de Mary na infância e tinham opinião otimista da Ciência como Percy.
Assim, observa-se uma influência do pai de Mary sobre sua visão da Ciência.
Frankenstein tornou-se uma “figura mítica moderna” e temerária referente à Ciência.
Na narrativa Frankenstein era o nome do cientista, no entanto, a “Criatura” acabou assumindo o nome do criador na popularização da história.
Em certo sentido, Frankenstein é um mito similar ao “Morto vivo” conhecido como “Zumbi”, um herói dos escravos no Brasil, que acabou se tornando um mito universalizado como uma figura de alguém suspenso entre a vida e a morte.
Embora ambos habitem, de certa forma, esse espaço entre a vida e a morte, há diferenças.
Frankenstein faz lembrar que uma pessoa é “mais do que a soma de suas partes”. O cientista tentou juntar as partes de cadáveres para fazer um todo, mas não teve sucesso.
Já Zumbi foi aquele que tido em condição de escravo, ou seja, em condição subumana, ao ser morto, não morreu. Sua figura de “morto vivo” assombra seus perseguidores.
Já a figura de Frankenstein assombra seu criador e os humanos suscetíveis às ameaças de uma Ciência desafiadora da natureza.
Portanto, esse pode ser um  “Mito da Ciência desumanizante”.
 
Modernidade e o novo olhar

A Modernidade também condicionou outra forma de novo olhar sobre o humano.
A partir do Século XX, o Cinema, um aprimoramento da fotografia e mais do que um “teatro fotografado”, instalou-se no espaço do Teatro convencional.
Por sua vez, o teatro moderno veio do Teatro da Grécia “refeito” por Shakespeare.
Assim, Shakespeare, que no dizer de Harold Bloom teria criado a modernidade, retomou o teatro que em sua origem grega teria vindo de rituais dionisíacos.
Assim, o Cinema seria uma “versão dionisíaca moderna” da catarse teatral grega.
Desse modo, tem-se Rodolfo Valentino (1895-1926) como o primeiro Mito de Massa do século XX, arrastando multidões para seu funeral em New York.

Tratando-se de  Medicina, Ciência e Cinema podemos lembrar as obras:
Gabinete do Dr. Caligari (1919) de Robert Wiene.
Dr. Mabuse (1922 e 1932) de Fritz Lang.
Metrópolis (1926) de Fritz Lang.
Obras essas que demarcaram uma Medicina ameaçadora em um período entre guerras.

Já nos anos 1960, no México, o filme “O Senhor Doutor” (1965) de Cantinflas retrata um lado bastante humano da Medicina, condizente com a visão do autor sobre a humanidade.
No fim do século XX voltam as obras que retratam uma ciência temerária em relação à Medicina como, por exemplo o filme Gattaca (1997) de Andrew Niccol.
Já o Homem Bicentenário (1999) de Chris Columbus frisa que talvez valha mais a pena morrer e permanecer humano, em vez de se tornar uma “máquina perene”. Concomitantemente a isso, na sociedade surgiam protestos em relação a “globalização econômica” glamurizada mas desumanizante.
Também a televisão entrou nas formas de retratar vínculos entre a Medicina e a sociedade.
Nos anos 1960 Dr. Kildare e Ben Casey retratavam médicos como heróis jovens próprios de uma cultura jovem pós Segunda Guerra. Concomitantemente a série “5ª Dimensão” (Outer Limits) acompanhava uma apreensão como novos poderes da ciência, com novas versões de mortos-vivos, na medida em que passou a ser possível a manutenção artificial da vida.
Nos anos 1970 a figura amadurecida de Marcus Welby substituiu os jovens, na medida em que a sociedade juvenil dos anos 1950-1960 passava a conviver com uma crise (decorrente da crise do petróleo) menos visível do que os conflitos decorrentes da Guerra Fria.
No fim do século XX, nos anos 1990 a série E.R. (Plantão Médico) trouxe os médicos para o mundo real colocando-os no mesmo dia a dia das outras pessoas, apresentando contradições entre traços algo heróicos e traços humanos.
Já no século XXI surgiram inúmeras séries sobre Medicina, como derivações de E.R, sendo  “House” a série emblemática desse período, retratando, ao mesmo tempo que um elevado refinamento técnico cientifico, uma busca de House por um “humanismo perdido”, mais do que apenas alguém que seja cínico e descrente.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Curso "Humanização da Medicina e seus Mitos" - Aula 3 - Parte 1 - O Mito da Mitologia

Curso “Humanização da Medicina e seus Mitos”
Aula 3 – Parte 1 – O Mito da Mitologia

Temos questionado sobre a relação entre o binômio humanização/desumanização na área da Saúde e na Medicina e os Mitos nos diversos sentidos desse termo.
Vamos inicialmente estudar alguns aspectos sobre o “Mito da Mitologia”.

As origens do Mito se perdem no início da humanidade.
Ser humano, cultura e linguagem formam um triângulo inseparável “desde que existe ser humano” sobre a terra. Essa correlação inseparável determinou os limites e as possibilidades, bem como as características do entendimento do homem sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo.
Usemos um termo da linguagem de Eliade e de Kereny para os “primórdios” da humanidade. Esse termo é o adjetivo “primordial”.
Podemos dizer que primordiais eram as “primeiras coisas” que supostamente integraram o ser humano.
Assim podemos falar em uma “Cognição Primordial”.
Cognição diz respeito à capacidade de aprendizado, de conhecer do ser humano. Assim, em alguma etapa do desenvolvimento humano que se perde em milhões de anos atrás, o ser humano passou a ter um padrão diferenciado de cognição que estamos chamando de “cognição primordial”.
Dessa “Cognição Primordial” um elemento fundamental é a capacidade de ter uma “memória individual”.
Supostamente as outras espécies animais têm um certo grau de memória individual. Os eventos benéficos, maléficos ou neutros devem marcar de diferentes formas o sistema nervoso dessas outras espécies, de modo que compõem alguns dos fatores que condicionam o comportamento desses animais.
O ser humano passou a apresentar essa capacidade em um maior grau de complexidade.
A intrigante possibilidade do indivíduo “dividir-se a si mesmo”, de modo que seja capaz de refletir sobre o seu próprio ser, acrescenta uma série de implicações na capacidade de memória individual. Aliás, o verbo “refletir” também se aplica à “imagem refletida no espelho”. Até onde se sabe só o ser humano é capaz de reconhecer-se no espelho. Para que esse reconhecimento ocorra, é necessário um distanciamento, uma divisão interna, que permita ao indivíduo saber que aquele no espelho “é ele mesmo” e “não é ele mesmo”; é uma imagem dele e não de outra pessoa, mas não é exatamente ele e nem outra pessoa. Mas a imagem permite uma “autoidentificação”: um sinal distinto de identidade pessoal.
Alguém pode questionar se há necessidade de adjetivar a memória de individual, pois pode considerar que se a memória situa-se no cérebro, então só pode haver uma memória individual.
Ocorre que o ser humano individual sempre é atravessado pelo “coletivo”, pelo “comunitário” desde os seus primeiros momentos de existência. Isso se entende por aquele triângulo inicial entre ser humano, cultura e linguagem. Há uma série de “marcas de memória” que são culturais, são comuns aos membros de uma comunidade humana.
Alguém pode falar aí em um “engrama coletivo”. Podemos concordar, mas sem nos apressarmos a reduzir essa categoria apenas à dimensão genética.
Assim, memória individual e memória coletiva primordiais foram importantes para o acúmulo de conhecimento e aprendizado do ser humano.
Outro elemento dessa cognição primordial é a “capacidade de comparação”. Essa é uma espécie de “capacidade matemática pré-histórica”. Uma capacidade neurológica ou neuropsíquica de “mensuração”. Se as outras espécies animais tinham uma capacidade inata de “mensurar” a distância da presa, ou da ameaça, por exemplo, no ser humano essa capacidade se traduz em uma interpretação mental e instrumental de mensuração.
Assim, vemos nessa cognição primordial a noção de grandeza, a percepção de opostos, a noção de espaço e de tempo, a noção de linearidade e a noção de ciclicidade (mais do que de circularidade), bem como as habilidades motoras concomitantes a esses outros processos.
Assim podemos falar em noções “primordiais”. Noções essas que dizem respeito a: defesa e  ataque; ameaça e agressão; dor e sofrimento; poder e impotência; vida e morte. Nesse contexto noções mais complexas dizem respeito a “culpa” e “responsabilidade”.
A noção de culpa supostamente estaria ligada a alguma forma de “crime primordial” que diria respeito à consciência da necessária morte de animais para sustentar a tribo/comunidade, ou ainda a alguma forma de sacrifício ou morte de outros seres humanos.
A responsabilidade estaria ligada à consciência de “ter que cuidar” da família ou comunidade, em um patamar além da noção instintiva dos animais.
Esses processos se deram no nível individual e no coletivo.

Linguagem e Noções primordiais
Assim também esses diversos processos interligaram-se à linguagem.
A linguagem verbal e não verbal prestou-se ao entendimento de si, dos outros, do mundo
e dos vínculos entre esses elementos.
Na linguagem, que é sempre simbólica, inseriram-se as “imagens míticas”.
Concomitantemente “explicativas”, “condensadoras” e “atenuantes” de uma carga emocional sobre “vínculos vivenciados”. 

Assim, até agora, ao falar-se em “cognição primordial” parece ter-se falado mais sobre a capacidade racional, ou mesmo intelectual do ser humano.
Ao falarmos de “imagens míticas” inseridas na linguagem primordial estamos inserindo também a noção de “emoção primordial”. Todo o tempo, os seres humanos tiveram que aprender também a respeito de suas emoções, e aqui também individuais e coletivas.
Desse modo, os vínculos vivenciados emocionalmente puderam adquirir um caráter “sagrado”, ou seja, transpuseram os limites do cotidiano (tempo, espaço, etc.), “consagrando” esses vínculos, em alguma forma de memória coletiva.

Mito da Mitologia
A palavra Mito vem de mythoi , que significa  “narrativa”, ou ainda “história” (ou ainda a “estória” de outras línguas ou que já teve seu lugar no português).
Conforme o estudioso de mitologia Carl Kerényi (1897-1973):
O Mito era uma “narrativa que suscitava ecos no interior dos interlocutores, despertando a consciência de que essa narrativa dizia respeito pessoalmente ao narrador e ao espectador”.
Ainda conforme Kerényi, o mito grego sempre figura como uma coisa “perceptível”, “do cotidiano”, mas sua simbologia “vai além do significado primeiro” e desdobra-se em várias imagens na mente.
Conforme Mircea Eliade (1906-1986) o mito é realidade cultural complexa, que conta uma história dos tempos primordiais, história essa que tem um caráter sagrado; que sempre se refere a “realidades”.
Segundo Joseph Campbell (1904-1987) o mito, ou ainda a Mitologia, tem 4 funções:
1- Mística ou metafísica, dizendo respeito à uma forma de reconciliação individual e coletiva.
2- Cosmológica – correspondendo à possibilidade de inserção no Todo.
3- Sociológica –  função de adequação à ordem social.
4-     Psicológica – o mito molda a psique do indivíduo.

Deuses e heróis gregos
Falando mais particularmente das entidades míticas gregas, podemos inicialmente assinalar algumas características dos deuses e dos heróis gregos.
Para os gregos os deuses são de um tempo antes dos tempos, um “tempo primordial” sem a mesma contagem de tempo dos humanos.
Já os heróis são de um “tempo intermediário” entre o tempo primordial e o tempo histórico.
Esses heróis, mesmo que tenham sido inicialmente pessoas reais, posteriormente suas lendas os “retiram da história” e os aproximam dos deuses.
De certa forma a “glória do divino cai sobre o herói” e se combina com a “sombra da mortalidade”.
Os heróis gregos têm importante papel na memória coletiva.
O culto aos heróis era precedido pelo culto à deusa Mnemósine, deusa da Memória.
Assim os heróis dão sentido e motivação de vida a seu povo.
Por outro lado, os heróis gregos não têm apenas o sentido de “vitória”, como muitos “heróis modernos”, mas também estão ligados à importante noção de sacrifício da cultura grega.
Conforme Carl Gustav Jung (1875-1961)  a “figura arquetípica” do herói tem importante função no desenvolvimento psíquico.
O termo “arquétipo” foi inicialmente proposto por Platão. Archetypon (ou seja, de tipo – forma e de arché – antigo) dizia respeito ao “modelo original” das coisas, modelo esse perfeito e presente no Mundo das Ideias (Topos Noetos).
Jung retoma essa conceituação e a utiliza no sentido de “imagens primordiais universais” presentes no inconsciente coletivo.

Mito – Culto - ritual
O culto aos deuses e heróis é mais do que apenas uma “imitação do mito”.
O culto busca “reviver” o mito.
A linguagem do culto era própria de sua cultura e, portanto, distante de nosso acesso, o que pode dificultar seu entendimento pleno.
Os Rituais diziam respeito a rituais de antigos “eventos sagrados”, ou ainda a Ritos de Passagem em diversas etapas da vida individual e coletiva (por exemplo, o rito de passagem da puberdade à idade adulta).
Eliade vê resquícios de ritualidade na Modernidade que têm apenas uma parcela de significado e carga emocional-racional dos antigos mitos.

Voltando dos mitos para a medicina, vamos questionar se haveria uma “Desumanização antiga?” – ou seria um Mito antigo da desumanização da medicina?
Assim citemos Archagathos de Esparta, que no ano 219 a. C. teria sido o primeiro médico grego em Roma, saudado pelo povo e pelo Senado como “curador de feridas”.
Por problemas posteriores ele depois foi repudiado e chamado de “açougueiro”.
Tal afirmação não ressoa estranha aos nossos dias. Teria sido esse um episódio antigo de “desumanização em medicina” ou teria sido uma injustiça contra Archagathos?
Uma outra menção vem do romano Plínio, o Velho (séc. I d.C.):
Ele particularmente não gostava dos médicos gregos e dizia:
“eles aprendem com nossos corpos, fazem experimentos até a morte, e o médico é o único que não é punido por assassinato”.
Essa também é uma frase que não ressoa estranha a nós. Por outro lado, devemos lembrar que em Roma a Medicina era exercida por estrangeiros ou por escravos. Os estudiosos latinos que escreveram sobre Medicina eram estudiosos em geral, não apenas de medicina e nem foram iniciados em escolas médicas, como ocorria com os gregos.





domingo, 28 de agosto de 2011

Curso "Humanização da Medicina e seus Mitos" - Aula 2 - Parte 2 - O Mito

Curso Humanização da Medicina e seus Mitos
Aula 2 - Parte 2 - O Mito
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

A palavra “mito” é uma palavra bastante usada no dia a dia, principalmente pela mídia,
mais frequentemente com o sentido de algo ilusório, inventado enganosamente, ou mesmo como alguma forma de mentira.
O sentido “correto” das palavras é relativo e dependente de várias circunstâncias. O uso das palavras também constrói seus sentidos. Por outro lado, isso não desvaloriza a busca do sentido original das palavras. Esse sentido original pode ser revelador de valores próprios da comunidade dentro da qual surgiram esses termos. Deve-se ressalvar que o entendimento do sentido original das palavras por vezes pode ser apenas aproximado, na medida em que a distância no tempo possa dificultar essa compreensão em profundidade.
Assim, o mito como uma “interpretação falsa” do real pode conduzir ao entendimento de que o melhor entendimento do real vai conduzir do mito à realidade. Desse modo, há trabalhos que se subintitulam “do mito á realidade”, como se fosse uma caminhada da escuridão para a luz, ou da ignorância para o conhecimento.
Em nosso estudo dos mitos, podemos dizer que, dependendo de a qual mito se referir, podemos dizer que o Mito talvez seja “mais real” do que aquilo que esteja sendo chamado de “realidade”.
Muitas vezes, com o passar do tempo, o Mito fica e aquilo que pensamos ser a Realidade passa, dependendo de qual seja o conceito ou o discurso a respeito do Real.
Comumente ao Real que é aceito como “científico” dá-se o atributo de “verdade”.
Já ao Mito  que é “condenado” como “não científico”dá-se o atributo de “mentira”.
Apesar de todas essas considerações, é conveniente que aceitemos o sentido da palavra mito em seu uso cotidiano, bem como em outros sentidos, lembrando-se de que se deve observar o contexto em que esse termo está sendo utilizado.
“Mito”, em seu sentido originário do grego, pode dizer respeito a “narrativa”, “conto”. Oportunamente voltaremos a esse sentido original da palavra.
Agora queremos adiantar aqui alguns aspectos a respeito da ideia de “Mito Moderno”, como mais um sentido da palavra mito.
“Mito Moderno” diz respeito à pessoa ou entidade, real ou imaginária, que se torna uma espécie de “personagem” da sociedade, em geral veiculada pelas diversas formas de mídia.
Ou ainda a uma pessoa que se torna uma espécie de “marca” com um “valor agregado”.
Implica em certa carga de poder, em vários sentidos, e de fantasia.
Essa entidade dá nova forma e nova roupagem a significados que perderam sua expressividade na cultura moderna e pós-moderna.
Esta nova forma e nova roupagem não necessariamente recuperam a carga simbólica e emocional que acompanhava certos fenômenos antigos associados a mitos.
Conforme Mircea Eliade existem figuras “modernas” que substituem os antigos mitos, mas que não têm a mesma profundidade e conteúdo destes.
Nesse contexto, convém lembrarmos a origem dos termos “Moderno” e “Modernidade”.
O mais remoto que podemos ir em relação a “moderno” é com Cassiodoro, um estudioso romano do século VI. Após ter sido exilado por anos de Roma, ao voltar, Cassiodoro constatou que ninguém mais entendia a língua grega; percebeu estar vivenciando uma grande mudança social e afirmou estar vivendo em “tempus modernus”, ou seja, em tempos de mudança, de transformação, já que modo dizia respeito a “momento”. De maneira similar temos atualmente a palavra “moda”. Estar na moda é estar “no momento”.
A palavra modernus continuou sendo usada na Idade Média com esse sentido de atualidade ou momento, acompanhando certo dinamismo em discussões entre estudiosos ocorridas nesse período, contrariamente à impressão habitual que se tem da Idade Média.
Um discurso mais corrente sobre a ideia de “moderno” ocorre principalmente a partir do Iluminismo e pós-Iluminismo.
No século XVIII surgiu na França a discussão chamada de  “Querelles des anciens e des modernes” , ou seja, um debate a respeito do valor da imitação dos modelos clássicos gregos e latinos na arte.    
Na virada do século XVIII para XIX Hegel disse: “os novos tempos são os tempos modernos”.
Assim, nesse período há a referência a  “modern times” ou “temps modernes” para se referir aos 3 séculos anteriores. Localiza-se então em torno do ano 1500 a transição entre a época medieval e a época moderna.
A data de 1453, ano da queda do Império Romano do Oriente, mais especificamente a dominação de Constantinopla pelos turcos otomanos, é tida como um marco delimitador do início da Idade Moderna, com a migração de sábios gregos para o Ocidente, além de passar a haver uma dificuldade ao comércio com o Oriente pela rota de Constantinopla.
Acompanhando esse processo tem-se o incremento das navegações, que já haviam se iniciado em 1416 com o Infante Dom Henrique de Portugal e sua lendária Escola de Sagres. Em se tratando de mitos antigos e modernos, pode-se dizer que o Infante Dom Henrique e a Escola de Sagres são importantes entidades históricas com forte significado mítico entre o antigo e o moderno. Comumente ouve-se que não existiu uma Escola de Sagres no sentido de uma instituição formal com uma edificação e cursos regulares. Na verdade a Escola de Sagres dizia mais respeito a um agrupamento de estudiosos e conhecedores da navegação. Os feitos dessa Escola foram tão significativos que por si só carregam um  caráter mítico de um processo técnico e científico historicamente paralelo ao que ocorria no Renascimento italiano.
Alguns outros eventos que acompanham a Idade Moderna, além das navegações e a Descoberta das Américas são o Renascimento e seus desdobramentos bem como o movimento de Reforma religiosa.       
Economicamente foi importante o Mercantilismo e a instalação da “escravidão moderna”. Ora, podemos questionar se essa “escravidão moderna” seria o reviver de outro aspecto dos antigos gregos e romanos, além daqueles realçados pelo renascimento das artes e ciências da Antiguidade.
Assim, o que seria ser novo ou antigo? Ou ainda ser moderno?
Os termos “novo”, “antigo”, “moderno” também carregam certos valores agregados que têm algum caráter mítico e fazem um jogo de palavras e sentidos, ou seja: nem sempre aquilo que recebe o adjetivo de “novo” é necessariamente “inovador”.
Continuando o debate sobre o Moderno, devemos citar que o termo “Modernidade” foi consagrado pelo poeta francês Baudelaire em meados do século XIX referindo que:
“A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente”.
Já a noção de “Pós – Moderno” vem principalmente após a obra de Jean François Lyotard  de 1979 intitulada “La condition postmoderne”.
O Pòs Moderno diz respeito à era após 1950 onde a Tecnologia comanda a Ciência, o especialista inabilita o generalista. Reforça-se o debate entre “eficiente” e “não eficiente” e não mais entre “verdadeiro e falso” e entre “justo e injusto”. Assim reforça-se a ênfase nos resultados e relativiza-se os meios para buscar esses resultados.
Antes desse período havia certa visão “iluminista” de Ciência, no sentido de buscar a verdade. Essa visão passa a ser substituída por uma Ciência utilitarista que possa ser eficiente em busca dos resultados desejados.
No período Pós-Moderno o conceito iluminista de “Estado-Nação” passa a ser substituído pelo de “Globalização”. No fim do século XX a Globalização acentuada pelo seu caráter econômico passou a ser contestada por movimentos anti-globalistas diversos.
No início do século XXI o processo pós-moderno parece passar por uma crise e transição para algum outro formato de correlações entre estruturas e poderes no mundo.
De qualquer forma, este período ainda se faz marcar por um “atual fugaz”, ou ainda “um presente porvir”. Acentua-se o suceder de modismos e o mito da moda. Passa-se de “marcas de grife” para a “cultura de grife”, de modo que até mesmo a Ciência tem seus modismos e suas marcas, com certos assuntos enfocados com glamour pela mídia, mesmo que seja eventualmente uma doença.
Deve-se ressalvar que há autores que discordam do pós-moderno, achando que é apenas um desdobramento do moderno, ou mesmo discordam da noção de moderno.
    

sábado, 20 de agosto de 2011

Curso "Humanização da Medicina e seus Mitos" - Aula 2 - Novo Humanismo e Transhumanismo


Curso “Humanização da Medicina e seus Mitos”
Aula 2 – Parte 1 -  “Novo Humanismo – Transhumanismo”
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves


Novo Humanismo
O autor David Cave em sua obra “Visão de Mircea Eliade para um Novo Humanismo” refere que Eliade detecta uma dimensão essencial do ser humano para o que ele, Cave, chama de  “um novo Humanismo” e que pode servir para abordar alguns aspectos referentes ao debate sobre o binômio “humanização/desumanização.em Saúde”. Assim, no discurso de Eliade referente a várias dimensões do ser humano que ele nomeia como: homo religiosus, homo sapiens, homo faber, homo ludens, homo loquax – Cave destaca o homo religiosus como uma instância do ser humano que o predispõe à necessidade de religar-se com o Todo. Esse aspecto está ligado a um desejo essencial “de ser” dos humanos e de buscar uma condição de “sentido” para a existência.
Comenta-se então que se trata de uma espécie de “postulado arquetípico” do ser humano.
Nesse “Novo Humanismo” de Eliade:
O indivíduo, “isolado e desmitologizado” da cultura moderna, passa a perceber parcialmente mitos e símbolos relacionados à existência humana, de modo incompleto e variado, mas sem preencher satisfatoriamente os pressupostos arquetípicos referentes à condição de homo religiosus.
Essas necessidades se superficializam em ficções, sonhos, festividades, ritos modernos e mitos modernos. Nessas diversas manifestações há certa persistência do um tipo de  caráter “mágico”, ou seja “não racional”, que se associa habitualmente aos mitos, de modo que atividades aparentemente racionais, podem estar carregadas de emocionalidade e de significados agregados além do significado primeiro de cada um desses eventos.

Transhumanismo
A palavra “transhumanismo” pode ter sentidos diversos.
Para Basarab Nicolaesco, físico que participou do Manifesto da Transdisciplinaridade (1994), o termo “transhumanismo” refere-se à condição de “oferecer a cada ser humano a capacidade máxima de desenvolvimento cultural e espiritual”.
Já para Nick Bostrom e David Pearce (1998), transhumanismo diz respeito a “ir além dos limites do humano” usando de todo recurso tecnológico que for possível.
Assim, propõem o uso da tecnologia para expandir as capacidades humanas de maneira ilimitada, supondo uma “superação do humano”.
Ora, desse modo, passa-se de “ser humano” para um ser “ser transhumano”.
Alguns supõem esse processo como uma nova forma de “Eugenia”.
Lembremos que “Eugenia” foi uma doutrina criada por Francis Galton (1822-1911), entre 1865-1883. Trata-se de doutrina influenciada pelo evolucionismo de Darwin, associado a uma teoria das raças que, no século XIX, adquiriu um discurso científico que se reforçava da noção de “seleção natural”. Esse tipo de ideia adentrou diversos campos de estudo, de modo que surgiu o que foi chamado de “Darwinismo social”, o que tendia a valorizar o indivíduo mais favorecido socialmente e a criar “camadas sociais” consideradas “superior” ou “inferior” umas em relação às outras.
Esse processo tornou-se cada vez mais uma ameaça aos mais fracos e vulneráveis.
Desdobramentos históricos desse processo acabaram por conduzir a regimes políticos totalitários e ditaduras que foram responsáveis por terríveis guerras e tragédias do século XX.
Assim, considera-se temerária a possibilidade de todo tipo de manipulação científica sobre o ser humano, de modo que possa “desumanizar” as pessoas nos mais variados sentidos.
Portanto, faz-se cada vez mais necessária a presença da Ética em todo e qualquer processo científico que envolva seres humanos, mesmo que, aparentemente, em um primeiro momento, seja para beneficiá-lo.
A Sociedade precisa estabelecer quais os limites éticos que devem determinar até onde é conveniente a Ciência interferir no que através de milênios configurou-se como “ser humano”.
Entre o Novo Humanismo e o Transhumanismo, no que diz respeito ao cuidado com a saúde, o ser humano fica entre buscar um “passado perdido” no significado mais profundo dos mitos, ou aprimorar-se entre a proposta transhumanista de Nicolesco ou ainda aquela do desenvolvimento tecnológico.  
Há quem fale ainda na possibilidade de um  “pós-humanismo” como superação do “humano”. Essa também seria uma forma de “desumanização”.
Será que uma “Medicina pós-humana”, ou uma espécie de “transmedicina tecnológica” seria ainda uma “medicina do humano”?
Austin Dacey pondera que alguma espécie de “filosofia pós-humanista” proveniente desses referidos processos, no fim das contas, só poderia ser feita por “seres humanos”. No fim das contas, todas essas reflexões são feitas por “seres humanos”.
Outros estudiosos questionam se em uma “ciência pós-humanista” haveria o objetivo de criar espécies “pós-humanas”?
Todas esses debates apontam alguns direcionamentos a respeito do entendimento do binômio “humanização-desumanização” em Saúde.



quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Curso "Humanização da Medicina e seus Mitos" - Primeira Aula.


Curso “Humanização da Medicina e seus Mitos”
Aula 1 – Humanização – Anthropos e Homo sapiens
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

Passamos a discutir temas dessa natureza em 1985, na Escola Paulista de Medicina, quando iniciamos um “Grupo de Discussões sobre Humanismo e Saúde”. A partir desses encontros escrevemos, em 1988, o capítulo “Uma visão fenomenológica da Medicina”, no livro “Vida e Morte – uma visão fenomenológica”.
Essa atividade desdobrou-se em outros projetos e atividades nos anos seguintes.
Os termos “humanização e desumanização” começaram a ser usados na área de saúde, no Brasil, nos anos 1990, com alguns antecedentes nos anos 1970-1980. Em outros campos há o uso desses termos desde o século XIX e início do século XX.
Atualmente faz-se o seguinte questionamento:
Com todo o avanço da Medicina,
Com o aumento do tempo de vida,
Com as facilidades de hoje,
Por quê se fala tanto em
Desumanização da Medicina?
Alguns dizem que se a Medicina diz respeito ao ser humano, então ela já é humanizada por si só e não há o que humanizar.
Sendo assim, essa questão é um mito?
Ou existe um mito da humanização e desumanização em saúde?
Qual tipo de mito?
A mitologia teria algo a dizer sobre essa questão?

Na década de 1990 no Brasil, com as grandes filas de espera para atendimento nos hospitais e suas conseqüências iniciou-se o discurso:
“A Medicina está desumanizada”.
“A Medicina precisa ser mais   humanizada”.

O Verbo “humanizar” implica em  “tornar humano”. Ora, tal afirmação leva a pensar que há algo ou alguém “menos humano” ou “não humano”, produto da “desumanização”.
A sociedade adota novas palavras na medida em que modificam-se as dinâmicas sociais.
Por exemplo, observamos o fenômeno do “emergente”:
O antes chamado país subdesenvolvido, ou país de terceiro mundo, passou depois a ser chamado de país em desenvolvimento e atualmente passou a país “emergente” no contexto da assim chamada “globalização”, que também é uma palavra mais utilizada nas duas últimas décadas.
Assim também o “novo rico” na sociedade passou a ser chamado de “socialite” emergente.
Novas doenças agora também são doenças “emergentes”.
Somos surpreendidos pelo fenômeno do “emergente” a todo momento e esse discurso pode ser uma expressão do período pós-moderno, usada não só pela mídia, mas também pela Ciência.
O Emergente evidencia-se por uma palavra, ou imagem que velozmente cria ou se torna uma marca passageira ou duradoura.
De modo similar têm-se o binômio “humanização-desumanização” em saúde.

A questão do “humano” remete-se à ideia grega de Anthropos ou à conceituação científica de Homo sapiens.
Para avaliarmos esse aspecto podemos ver outros termos similares a humanização:
São Humanismo e Humanitarismo.
                                                      
Humanismo é um termo surgido no período do Renascimento e diz respeiro a um Movimento dos indivíduos que reavivaram o conhecimento clássico e a arte clássica – (se é que se possa chamar de “movimento”).
Renascimento ou Renascença ocorreu nos séculos XIV, XV, XVI e corresponde mais a uma invenção ou concepção dos pensadores iluministas e pós-iluministas (sec. XVIII e XIX), que assim também “inventaram” a Idade Média como “Idade das Trevas” e o Renascimento como o fim desse “período obscuro”.
Assim também a idéia de um movimento chamado “Humanismo”.
É certo que Escritores como Petrarca – (1304-1374) e Boccaccio –  (1313-1375) estavam atentos a mudanças conceituais entre os estudiosos, mas não tinham a noção plena do processo que depois foi consolidada por estudiosos de séculos seguintes.
O Humanismo dizia respeito à afirmação do filósofo grego Protágoras (485-410 a.C.):
   “O homem é a medida de todas as coisas”.
No período do Renascimento há um reavivamento dos conhecimentos dos gregos, de modo que há um buscar do Anthropos grego.
Um dos grandes nomes desse período é justamente Leonardo da Vinci (1452-1519).
 Este Artista de todos conhecido também era um minucioso cientista (se bem que este termo surge no século XIX). Ele estudou o corpo humano em detalhes e, de certa forma, lançou o “dividir para entender”, ou “separar em pedaços para estudar”.
Assim também o médico Vesalius (1514-1564) torna-se o “pai moderno” da Anatomia com processo de estudo similar.
Teve-se então ganhos e perdas: Ganhou-se em conhecimento do detalhe, mas perdeu-se no todo.
Portanto, o processo de “dividir para entender” não foi apenas obra de Descartes.
Já o Homo sapiens ( homem sábio) foi um conceito feito no esteio da classificação dos seres vivos feita pelo  médico Lineu (1707-1778) (no mesmo período dos iluministas).
Assim, o ser humano foi classificado entre os outros seres vivos, dentro de um entendimento científico.
Há um aparente ganho pela inserção no processo científico, mas pode ter havido também perdas, se essa coneituação for usada para restringir a complexidade do que significa “ser humano”.
A palavra Humanitarismo é equivalente a Filantropia:
   Philos – amigo   Anthropos – homem
No Ocidente o Humanitarismo tem origem judaico-cristã.
No Antigo Testamento constam máximas como: deve-se cuidar do pobre, do doente, do órfão,  da viúva, do estrangeiro. Esse discurso diz respeito a uma postura de proteção aos mais fracos.
No Novo Testamento a parábola do Bom Samaritano, que socorre um individuo caído que pertence a uma parte do povo que não era simpática aos samaritanos, torna-se um dos padrões de atitude humanitária.
Até os primeiros séculos d.C. os “hospitais” serviam para soldados feridos. Nos primeiros séculos da Era Cristã, senhoras romanas cristãs começaram a criar hospitais para recolher doentes pobres.
De certa forma, As Santas Casas que surgiram em Portugal no século XV são sucessoras desse tipo de estabelecimento.
Na segunda metade do século XIX a medicina começa a correr contra o tempo, após a criação da amestesia em 1846 e as primeiras noções de antissepsia na década de 1860.
Assim, começam noções de urgência e emergência, concomitante ao crescimento das cidades, á mecanização da sociedade, e ao confronto entre a cidade e o indivíduo.

Entre o Anthropos e o Homo sapiens está a “pessoa”. Esse termo deriva dos termos per sona (latim) – Maskara (teatro grego).Ou seja, (soar através) ... da máscara.
Aí se tem então “personalidade”, “individualidade”, “identidade” como atributos da pessoa, que na Era Moderna será confrontada de diversas maneiras em relação ao seu estado de “ser humano”.



domingo, 12 de junho de 2011

Paradigmas e Complexidade

Paradigmas e Complexidade
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

Paradigma é um termo que significa “modelo” e que há milênios tem sido usado com esse sentido. Após a publicação de Thomas S. Kuhn (1922-1996) intitulada “A Estrutura das Revoluções Científicas” (1962- posfácio de 1970), a palavra “paradigma”, inicialmente restrita ao contexto científico, aos poucos passou a ser usada nos mais diversos contextos, com um significado similar ao estabelecido por Kuhn.
Thomas Kuhn era físico por formação. A partir de seu contato com o ambiente de Ciências Humanas ficou intrigado com as diferenças de métodos entre essa área e as Ciências Exatas, de modo que passou a se interessar em aprofundar estudos a respeito de História da Ciência. Com esse estudo, concluiu que os processos históricos em Ciência não ocorrem por uma mera cumulação de inventos e descobertas, mas antes por uma sucessão de paradigmas, sucessão essa que pode tomar um caráter “revolucionário” no sentido da mudança carregada por isso.
Assim Khun expressa seu conceito de paradigma científico:
“Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.
Observamos que os paradigmas são limitados a um determinado tempo e a uma determinada comunidade de praticantes de uma ciência. Devemos assinalar o aspecto do paradigma não fornecer apenas soluções dentro de um modelo, mas também fornecer os problemas. Assim, só é possível “enxergar” o problema, “detectar” o problema sob as condições impostas pelo paradigma. Sem essas condições, pode-se dizer que tal problema “não existe”.
Kuhn compara o paradigma a um jogo de quebra-cabeça: só são colocadas no quebra-cabeça as peças já pré-determinadas para ele. Uma peça diferente será prontamente rejeitada, antes de se tentar “encaixar” entre as outras.
Assim também o paradigma ou modelo científico. Só se pode fazer perguntas (problemas) dentro do modelo. Só se pode fornecer respostas (soluções) dentro do modelo.
Por algum tempo, o paradigma dá conta das perguntas. Kuhn chama esse período de um período de “ciência normal”. Nessa fase, apenas se repetem os métodos determinados pelo paradigma. Não há questionamentos.
Mas chega certo momento em que alguém começa a formular perguntas (problemas) que não cabem no quebra-cabeça (modelo). Chega um momento em que o paradigma já não é capaz de responder a todas as perguntas que começam a aparecer ao redor de seu domínio.
O indivíduo que lança tais questionamentos passa a ser considerado excêntrico, louco, de competência duvidosa, “um poeta”, etc.
Surgem conflitos internos ao paradigma que podem estar situados na linguagem ou nos métodos que até então consagraram o paradigma e ao mesmo tempo foram reforçados por ele. O conflito pode ser visível tanto na formulação de problemas quanto na busca/proposta de solução.
Doutrinas e paradigmas
Cada doutrina pode ter um paradigma central além de outros paradigmas associados que compõem a estrutura geral da doutrina científica.
Esses diversos paradigmas podem estar interrelacionados com os paradigmas de outras doutrinas. Por sua vez, as doutrinas configuram disciplinas científicas.
Assim, esses diversos elementos compõem uma rede complexa que abrange os variados campos de Conhecimento e Ciência.
Embora Thomas Kuhn tenha construído sua teoria principalmente sobre Ciências Exatas, podemos estender seu modelo epistemológico às Ciências Biológicas.
Nem sempre o estudioso que ficou consagrado pelo novo paradigma foi o primeiro a aventar tal hipótese.
Um exemplo disso pode ser a conceituação de Hipócrates (460-370 a.C) a respeito do cérebro ser responsável por todas as manifestações mentais e neurológicas em seu texto sobre “a doença sagrada”.
Essa conceituação já havia sido precedida pelo médico pitagórico Alcmeon tempos antes.
No entanto, todos a ligam a Hipócrates, seja por sua forte marca na história da medicina, seja por ter vivido no auge da Cultura Grega, um momento propício à consolidação de figuras como ele. Talvez possamos dizer que Hipócrates estava no Zeitgeist (espírito do tempo) desse momento.

Ignaz Semmelweis (1818-1865) foi o médico austríaco que percebeu uma associação entre a infecção puerperal e a falta de higiene de seus alunos de medicina. Mas sua tentativa de instaurar novos procedimentos na faculdade foi bastante criticada e rejeitada. O paradigma vigente não permitia essa inovação. Semmelweis desafiou as normas de então e não foi bem aceito.
Diferentemente de Semmelweis, Joseph Lister (1827-1912) consagrou-se pela prática da antissepsia.

A teoria microbiana das doenças a partir de Louis Pasteur (1822-1895) tornou-se consagrada de tal forma que se queria encontrar micróbios responsáveis por toda e qualquer doença. É um exemplo de um paradigma que se instalou com grande força nesse momento. Outros estudiosos precederam Pasteur nessas ideias, mas ele estava no Zeitgeist desse momento.
Em geral os paradigmas científicos não se instalam sozinhos. Habitualmente há condições sociais, culturais, políticas, econômicas e outras favoráveis à aceitação de um novo paradigma.

Em torno de 1982, os pesquisadores Barry J. Marshall e J. Robin Warren descobriram o Helicobacter pylori como provável causa de gastrite e úlcera gástrica. Isso ia contra vários paradigmas. Um deles dizia respeito à causa da gastrite ser atribuída principalmente a stress e a certos alimentos, temperos, etc. Outro paradigma dizia respeito à dificuldade da existência de microorganismo em ambiente ácido com o do estômago. Assim, tal proposta seria um novo paradigma que não foi bem aceito inicialmente. Um dos dois pesquisadores chegou a infectar-se com o Helicobacter para comprovar sua hipótese. Em 2005 ambos ganharam o Prêmio Nobel por sua descoberta.

A proposta do príon como uma nova forma patogênica por Stanley Prusiner em 1982 também foi desafiadora e constituiu um novo paradigma na medida em que admitia a possibilidade de proteínas patológicas se multiplicarem e “infectarem”. Em 1997 Prusiner ganhou o Prêmio Nobel, após a comunidade internacional alarmar-se com uma epidemia de casos de Doença da Vaca Louca e a comunidade científica aceitar esse novo paradigma.

E o que dizer-se de “pseudo – paradigmas”?
Na área da saúde pode-se dizer que podem equivaler a doenças ou tratamentos “da moda”.
Assim, por exemplo, há alguns anos a dislexia foi bastante comentada e passou a ser muito freqüentemente suposta. Mas a autora e fonoaudióloga Giselle Massi questiona a doença dislexia em crianças em diversos casos nos quais acha que pode ser apenas uma forma diferente de aquisição da escrita.(livro “A dislexia em questão” de Giselle Massi ).
Outro caso: grande parte de idosos com alterações cognitivas passou a ser diagnosticado como Doença de Alzheimer. No entanto, sabe-se que diversas moléstias podem ter quadro semelhante, o que inclui outras formas de demência, ou mesmo um comprometimento de uma função cognitiva.
Outro caso: Hiperatividade em criança. Qualquer criança mais inquieta passou a ter esse diagnóstico e fazer tratamento para isso. Essa “hiperdiagnose” tem sido bastante reforçada por informações provenientes da mídia em geral.

Complexidade        
Como diz Edgard Morin complexidade é diferente de complicação.
Ela se opõe ao reducionismo, é desigual e incerta (não linear), contempla a organização do ser vivo em vários níveis. Mantém abertas as possibilidades de várias causas poderem estar ligadas a vários efeitos.
Complexidade e método
Edgar Morin recusa uma teoria unitária do Conhecimento por achá-la simplificadora e que esconde as dificuldades do saber, na medida em que faz recortes para se configurar. Ele comenta que hoje se precisa de um método que, em vez de esconder, detecte as ligações, as imbricações. Assim, deve-se olhar para as ligações e não apenas para os objetos.
Deve-se extinguir as falsas transparências do que é obscuro.
Complexidade e Sistemas: o ser vivo é um sistema, mas não pode ser reduzido ao sistêmico. Assim, a teoria dos sistemas ganha vida quando contempla os vínculos.
Não há ser ou coisa isolada, seja em relação ao meio ou em relação a outros seres.
Eventualmente pode-se perguntar qual a praticidade da Complexidade na área da saúde.
Nós a usamos frequentemente quando se diz que:
- Cada paciente é um paciente.
- Cada caso é um caso.
- Cada pessoa é uma pessoa.
Alguém pode dizer que isso é óbvio.
No entanto, a Complexidade resgata o “óbvio” e mostra que ele também é necessário na rede do Conhecimento.
Paradigmas e disciplinas:
Além da sucessão no tempo dos paradigmas, há também a concomitância de paradigmas em nível multidisciplinar e nível interdisciplinar.
A complexidade transversaliza esses diversos níveis, aceita paradigmas concomitantes.
Assim, a complexidade remete-se ao nível transdisciplinar.
Paradigma – Complexidade:
As noções de paradigma acabaram sendo aplicadas a outros contextos além do especificamente científico. Tal extensão do conceito insere a própria noção de paradigma na noção de complexidade.
Assim, em relação à Complexidade podemos usar a citação:
“Todos os conceitos, nos quais se reúne semióticamente um processo inteiro,escapam à definição: definível é somente aquilo que não tem história” Nietzsche (1887).
                                       

sábado, 4 de junho de 2011

Parte 3 - Multi, Inter, Transdisciplinaridade

Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

Conforme já comentamos, existe certa tendência natural no ser humano em fazer algum tipo de subdivisão em suas atividades, acompanhando sua capacidade natural de atenção focada, e de ter essa atenção localizada no espaço e no tempo, distribuída de forma linear, ou não–linear. Desse modo, pode-se dizer que a multidisciplinaridade segue essa tendência. Isso não deve fazer da multidisciplinaridade a única nem a melhor forma de convivência de disciplinas. Há instâncias que são próprias da interdisciplinaridade e há “outras instâncias” em diferentes níveis de abordagem epistemológica, que correspondem à transdisciplinaridade.
Desse modo, achamos que cada nível de disciplinaridade tem seu contexto apropriado, de modo que não deve haver o objetivo de “acabar com a multidisciplinaridade” em benefício da inter ou da transdisciplinaridade. Ocorre que a multidisciplinaridade mais comumente está associada a uma maneira segmentada de conhecimento que tende a isolar cada área em seu próprio nicho com pouco contato com outras áreas. Em se tratando de áreas da saúde isso pode tornar-se mais dramático, na medida em que pode indicar uma segmentação do próprio ser humano. Nesse sentido que achamos interessante estimular o debate inter e transdisciplinar sem precisar para isso ter-se uma atitude contrária à abordagem multidisciplinar.

Voltando-se ao estabelecimento das disciplinas, observamos que  nos séculos XVIII e XIX ocorreu a gradual “consolidação” do que ficou assinalado como Ciência Moderna. Nesse processo ocorreu a subdivisão do conhecimento em áreas específicas a partir do aprimoramento de novos métodos científicos, novas técnicas e incorporação de novos vocabulários próprios de cada campo científico.
Auguste Comte (1798-1857) criador do Positivismo reforçou a subdivisão das ciências, e do conhecimento, em especialidades, e, paradoxalmente, propunha um certo tipo de unidade do conhecimento. Mas, também o não tão famoso William Whewell (1794-1866) também teve papel importante na configuração da conceituação de Ciência, de modo que criou o termo “cientista” entre 1833 e 1840, referindo-se ao profissional da Ciência.

Disciplinaridades

O discurso a respeito de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade ganhou corpo principalmente a partir de 1968, embora haja dados de que a palavra interdisciplinaridade tenha surgido nos anos 1920. Desse modo, um novo olhar a respeito das áreas de conhecimento acompanhou o eclodir de movimentos estudantis internacionalmente que clamavam por mudanças no ensino e na abordagem do Conhecimento.
Assim, questões referentes às “disciplinaridades” aparecem praticamente a partir da segunda metade do século XX. Quando nos reportamos a estudiosos de antes desse período e os consideramos “multi” ou “inter” ou “transdisciplinares”, essas considerações partem de nós, partem deste nosso tempo e não necessariamente os estudiosos enfocados viam as áreas do Conhecimento da mesma maneira que nós agora vemos.
Como um esclarecimento do uso de certos termos, devemos lembrar que palavras com o prefixo “multi”, como multiprofissional ou multicultural, nem sempre equivalem a multidisciplinar. Pode haver concomitância de cada uma dessas palavras com quaisquer das formas de convivência entre as disciplinas, ou seja, um trabalho multiprofisional pode ser interdisciplinar.

Como já dissemos, o termo atual “disciplina” pode corresponder a uma Área do Conhecimento ou a um Setor ou seção universitária ou departamento da Universidade.
Uma disciplina, seja em qualquer desses sentidos, não se estabelece apenas por critérios científicos, mas sempre tem uma vertente política (no sentido amplo do termo) em sua fundação, conforme Joe Moran.
Portanto, a configuração da disciplina (em seus vários sentidos) acompanha seu momento histórico, com as variáveis políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.
Por outro lado, “o mercado” pode demandar novos especialistas, ou seja, pode promover o aparecimento de novas especialidades e subespecialidades, ou ainda reativando antigas especialidades.
Podemos aplicar o raciocínio da citada influência mútua entre Conhecimento e as diversas vertentes sociais para o debate sobre as disciplinas. O olhar surgido na segunda metade do século XX voltado para a questão da disposição entre as disciplinas veio acompanhado com mudanças nos grupos voltados ao Conhecimento.
Após a Segunda Guerra Mundial ocorreu a massificação das Universidades e a passagem administrativa de cátedras para disciplinas (variando de país para país), passando a ser organizadas em departamentos (sob formatos variados). No Brasil certamente esse foi um processo ocorrido na administração universitária.
A antiga disciplina tinha o nome de Cátedra e correspondia ao “serviço do Professor Catedrático”, ou seja, tinha um forte traço pessoal do Chefe dessa área, sob o forte nome próprio de tal figura. Lembremos que a palavra cátedra provém do termo “catedra” como sendo a “cadeira” onde se sentava o bispo das catedrais. Nas catedrais havia escolas que foram precursoras das universidades. Assim o “catedrático” era aquele que comandava o ensino no local.
Com o processo de massificação das universidades, com o anseio pela democracia, dos mais diversos povos, após a Segunda Guerra Mundial, entra no ambiente universitário um espírito que busca modificar certa posições vitalícias de seu quadro de professores e experts, de modo que as áreas do Conhecimento deixam de estar vinculadas ao nome específico de um catedrático, para vincular-se à disciplina, ou especialidade propriamente dita.
Tais mudanças têm velocidade diferente nos diversos países, em virtude de condições próprias de cada nação. Enquanto nos países da Europa, os movimentos estudantis tinham forte enfoque também voltado às mudanças no ensino, em países sob regime ditatorial, como o Brasil, esses movimentos dirigiam-se mais fortemente a combater o regime opressor, havendo assim uma menor preocupação com as questões acadêmicas.
Então, o debate “multi, inter, trans” tem um determinado timing e processo com nuances diferentes nos diversos países. No Brasil, embora iniciado esse debate na área de pedagogia há um bom tempo, na área científica ainda há muita confusão sobre o sentido e aplicação desses termos.


Multidisciplinaridade

Também chamada de Pluridisciplinaridade (o prefixo “pluri” é latino, diferentemente do grego “multi”, de modo que “pluri” de adequaria mais ao latino “disciplina”).
Corresponde à coexistência de áreas do Conhecimento com algum tipo de proximidade, mas com diálogo superficial entre elas, com limitada troca de informações. Pode eventualmente haver certa harmonia entre as diferentes áreas, quando dispostas em uma organização burocrática do ambiente de ensino. Há alguns elementos comuns, mas cada disciplina fica com sua linguagem e seus próprios métodos.
Como já dissemos, sob certo ponto de vista pode-se dizer que essa disposição multidisciplinar das áreas do Conhecimento já está presente desde Aristóteles, não havendo novidade em se dizer que “agora somos multidisciplinares”. Eventualmente, quando uma área única, isolada, estiver realmente trabalhando de forma “unidisciplinar”, pode ser talvez o caso de passar a um nível “multidisciplinar” quando ao menos passar a ter algum grau de convivência com outras áreas.
O termo “unidisciplinar” é mais frequentemente usado nas situações de linhas de pensamento “totalizantes” que consideram apenas um único padrão de discurso como necessário e suficiente.

Interdisciplinaridade
Alguns consideram a interdisciplinaridade tão antiga quanto certos pensadores tidos como  “interdisciplinares” tais como: Platão, Aristóteles, Rabelais, Kant, Hegel, etc.
Para outros estudiosos a interdisciplinaridade é um fenômeno do século XX, radicado em reformas educacionais, em certas linhas de pesquisa e em movimentos com finalidade de transpor os limites disciplinares.
As raízes da Interdisciplinaridade podem estar em ideias que ressoam no discurso moderno: ideia de Ciência Unificada, ideia de um Conhecimento Geral; noção de síntese; integração do Conhecimento. Tentativas voltadas para esses objetivos, no século XX, por vezes ficaram  longe do propósito interdisciplinar e aproximaram-se de alguma forma de reducionismo.
Podemos fazer um rápido retrospecto histórico a respeito de tais processos.
Platão teria sido o primeiro a propor a Filosofia como centro de um Conhecimento Unificado e considerou o filósofo como o único capaz de sintetizar o Conhecimento.
Para ele, Dialética e Matemática seriam áreas proeminentes em relação às outras, além da Geometria.
Aristóteles caminhou em direção a uma subdivisão mais clara entre as áreas.
Para ele a Filosofia, e mais especificamente a Lógica, tinha proeminência sobre outras áreas, com um papel central e promovendo certa unidade entre elas.
Em Roma, embora houvesse uma ênfase maior na disciplina Retórica, o autor Quintiliano, por exemplo, propunha uma ampliação do espectro e da ênfase dos estudos.
O romano Cassiodoro, no início da Idade Média, fez uma escola, o Vivarium, e quase conseguiu criar uma primeira universidade no século VI.
As escolas medievais herdaram o Trivium e o Quadrivium de Roma: Gramática, Retórica e Dialética no Trivium; Música, Geometria, Aritmética e Astronomia no Quadrivium. Esses estudos eram chamados de Artes Liberais. Esse padrão de subdivisão segue parcialmente a linha aristotélica. Seu nome de “Artes” provém da tradução latina do grego “techné”, palavra abrangente usada tanto para “arte” no sentido de produção estética, quanto no sentido de habilidade.
As primeiras Universidades surgiram na Idade Média, em geral, das escolas das catedrais. Desde deu início guardaram certas características de autonomia em relação ao poder vigente, de modo que, embora sofrendo controles, sempre ter sido foco de origem de inovações e de movimentos questionadores do padrão corrente de Conhecimento. Assim, a Universidade era universitas scientiarum, ou seja,comunidade de disciplinas do Conhecimento”, e ainda, universitas magistrorum et scholarium, ou seja, comunidade de professores e estudantes.
Na Baixa Idade Média, “disciplina” como área do Conhecimento passou a ser aplicada de forma mais proeminente a 3 áreas: a Teologia e Artes em Paris; a Direito em Bologna; a Medicina em Salerno. Vários séculos mais tarde Kant, no “Conflito das Faculdades”, vai queixar-se do favoritismo do poder vigente dirigido a essas três áreas, em detrimento do campo então chamado da Filosofia (que englobava também o que hoje chamamos de Ciências Humanas).
Diversos estudiosos desde o período do Renascimento, indo até o Iluminismo e após este, expressaram alguma preocupação com a questão do Conhecimento fragmentado ou uinficado, tais como:   Bacon, Descartes, os enciclopedistas franceses, Kant, Hegel, Comte e outros. No entanto, tais considerações não eram exatamente equivalentes ao atual enfoque interdisciplinar.
No século XIX gradualmente consolida-se a moderna disciplinaridade, acompanhando a Revolução Industrial e a urbanização da sociedade. Assim, ocorrem avanços tecnológicos e o Conhecimento torna-se mais centrado na Ciência decorrente do aprimoramento e subdivisão das chamadas Ciências Naturais. Entre 1833 e 1840 William Whelwell criou o termo “cientista” para o praticante da Ciência, de modo que, de certa forma, coloca esse indivíduo como um profissional dessa área em primeiro plano, em relação às suas outras habilidades. Concomitantemente a tudo isso, consolidam-se também as nações modernas, de modo que o traço do nacionalismo também vai impregnar o ambiente do Conhecimento.
No início do século XIX, com a fundação da Universidade de Berlim por Wilhelm von Humbolt, estabeleceu-se um certo padrão de ensino universitário que foi seguido por diversas universidades no mundo. Tal padrão seguia uma noção de Educação Universal. Com o transcorrer dos século XIX e XX, tal padrão vai se confrontar com a gradual multiplicação de disciplinas e especialidades, culminando com variados conflitos sobre o modelo a ser seguido no ensino em geral, no fim do século XX e início do século XXI.

Conforme J. Moran, o termo “interdisciplinaridade” surgiu em meados da década de 1920, principalmente em torno de questões sobre educação universitária na Inglaterra no ambiente após a Primeira Guerra Mundial.
A Primeira Guerra Mundial foi um importante divisor de águas na História, de modo que, no entender do historiador inglês Eric Hobsbawm é a partir daí que se inicia o século XX. Esse evento condicionou a modificação de diversas variantes sociais e culturais, bem como no Conhecimento e na Ciência. Não necessariamente como consequência direta da guerra em si, mas muito mais pelas modificações sociais e culturais decorrentes dela.
Assim, conforme Moran, após a Guerra Estudos da Língua Inglesa passaram a ter maior valorização na Universidade e passaram a ter uma função de elo interdisciplinar entre os diversos campos do Conhecimento. Moran cita o estudioso Leavis, como um dos principais estimuladores desse movimento. Esse processo estava ligado a uma nova disposição entre as nações no pós-guerra, voltando-se para suas próprias origens e características culturais.
É interessante observarmos que essa questão surgiu ligada a uma área de Estudos da Linguagem. Como sempre acentuamos, a questão “multi, inter, trans” está sempre precedida por fatores relativos à Linguagem.
Nas décadas de 1920 e 1930 houve uma busca pela Ciência Unificada, que para alguns é citada como interdisciplinar, mas que também pode ser vista como tendo um objetivo “unidisciplinar”.
Em 1924 estabeleceu-se o “Círculo de Viena”, que propunha uma terminologia e regras comuns para a Ciência.
Nos anos 1930 ocorreu a elaboração da International Encyclopedia of Unified Science por Otto Neurath, Rodolf Carnap e Charles Morris. Havia uma proposta de “Integração” entre as diferentes áreas científicas.
Depois da Segunda Guerra Mundial ocorreu a já referida multiplicação das universidades e sua massificação. Em certas universidades do Reino Unido os “Estudos Culturais” passaram a substituir a função do Estudo da Língua Inglesa como uma área interdisciplinar no sentido de intermediar as diversas áreas do Conhecimento, conforme Moran.

Interdisciplinaridade, no sentido amplo, significa uma integração entre disciplinas.
Assim, há várias interdisciplinaridades, já que pode haver várias formas de integração.
Por outro lado, ainda conforme Moran, não há interdisciplinaridade sem disciplinas. Portanto, a eventual proposta de eliminação das disciplinas pode conduzir a alguma outra coisa que ainda não é a interdisciplinaridade.
Conforme Pombo, não há apenas um único conceito de interdisciplinaridade. Ela pode ter as seguintes adjetivações: auxiliar, complementar, compósita, de engrenagem, estrutural, heterogênea, linear, restritiva, unificadora, etc., etc.
Conforme Klein,  podem ser várias as formas de trabalho interdisciplinar:
- intrapessoal – uma mesma pessoa utilizando várias linguagens e métodos.
- Interpessoal – entre duas ou mais pessoas.
- Interdepartamental – entre departamentos, disciplinas, etc.
- Conexões comunitárias – aplicação de conceitos e práticas disciplinares à comunidade.

Conforme Moran eventualmente confunde-se interdisciplinaridade com “unidisciplinaridade”. Ele refere-se ao que chama de “Teorias de tudo”. Tais teorias podem levar a um discurso hegemônico sobre o Conhecimento e, portanto, a um reducionismo no discurso científico. Assim, têm-se, por exemplo, alguns neodarwinistas bestsellers tais como Richard Dawkins para quem “tudo é gene”, até mesmo a cultura.
Ainda de acordo com Moran o campo da Neurociência é visto como uma área interdisciplinar da ciência que pode interligar “estudos culturais e biologia”.
       
Transdisciplinaridade

A palavra “transdisciplinaridade” foi lançada por Jean Piaget em 1970, dando a entender que havia necessidade de se dar “um passo além” da interdisciplinaridade.
Na transdisciplinaridade ele sugere que não haja barreiras entre as disciplinas.
Concomitantemente à proposta de Piaget, ganham espaço outras idéias que vão em direção similar como o Pensamento Complexo e os Estudos Transculturais (crosscultural studies).  
Em 1994 ocorre o “Manifesto da Transdisciplinaridade” com Edgar Morin, Basarab Nicolescu e Lima de Freitas, consolidando determinada linguagem e elementos em torno dessa conceituação.
A transdisciplinaridade tem três pilares:
1 –Níveis de Realidade.
Diz respeito a não reduzir-se o real a apenas um único nível de realidade seja ela correspondente à Física, ou à Química, ou à Biologia, ou a algum sub-nível biológico e assim por diante.
2 – Complexidade.
A Complexidade também vai no sentido contrário ao reducionismo. Como diz Edgar Morin, complexidade é diferente de complicação. Sob a visão complexa mantêm-se abertas as diversas possibilidades de entendimento, de formulação de problemas e busca de respostas. Busca-se jogar luz sobre as zonas obscuras ou excluídas do Conhecimento.
3 – Terceiro incluído.
O “terceiro incluído” vai além dos pares de opostos. Admite paradoxos. Vai além da Lógica convencional, admitindo níveis de Conhecimento que podem englobar noções que são conflituosas em outros níveis.
A Transdisciplinaridade também inclui aspectos culturais. Este pode ser talvez considerado como um quarto pilar.