domingo, 11 de junho de 2017

Medicina Narrativa – Aula 2


Narrativa e o binômio Saúde/Doença

Se pensarmos em uma construção de conceitos, quais palavras podem expressar “Saúde” e “Doença”?
Como construir a Narrativa de Doença e de Saúde?
As narrativas convencionais de doença e de saúde incluem: Anamnese, Exame Físico, Diagnóstico e Terapêutica. Eventualmente alguém poderia perguntar se a narrativa não corresponde apenas à anamnese. Em um primeiro momento seria pensado dessa forma, já que a história clínica tradicional corresponde à anamnese. No entanto, os outros itens também possuem cada um sua “narrativa própria”.
O Exame Físico tem uma narrativa que, em um primeiro momento, já vem contada pelo próprio corpo do paciente na maneira como ele se apresenta, por inteiro, não apenas um corpo biológico, mas também um corpo com sua dinâmica, seu comportamento, seus trejeitos, sua narrativa social e cultural expressa na roupa que o cobre e em suas atitudes e expressões. Outra narrativa do corpo é aquela do Exame Físico propriamente dito. A apresentação inicial do corpo do paciente já tem em si uma narrativa que “é lida” pelo profissional de saúde através da lente de seu treinamento para esse tipo de leitura. A partir do Exame Físico propriamente dito uma outra narrativa se estabelece, a qual será relatada no prontuário médico, seguindo um determinado padrão de linguagem que tem também seus parâmetros de espaço/tempo, sendo uma reinterpretação, uma releitura daquela história clínica, que vai complementá-la, ou questioná-la.
O Diagnóstico também implica em outra narrativa. O discurso do Diagnóstico é sintetizado, muitas vezes, em um diagnóstico sindrômico, cujas palavras simbolizam, significam uma narrativa construída a partir do conhecimento médico. Ao mesmo tempo o Diagnóstico é uma espécie de Epílogo da narrativa clínica, como que dando um desfecho na somatória das narrativas que o precedem.
A Terapêutica tem uma narrativa que se desdobra em várias partes. Há um discurso inicial a respeito do que consta em protocolos, manuais, consensos adequados aos diagnósticos obtidos. Mas segue-se o caráter de singularidade do próprio paciente, na medida em que a terapêutica padronizada precisa ser adaptada às condições individuais do paciente. Segue-se ainda uma outra parte que é a terapêutica cotidiana propriamente dita, que diz respeito ao dia a dia da ingesta ou aplicação de medicamentos.
Vemos então que a própria Medicina ou ainda os Cuidados da Saúde convencionais têm já sua narrativa, se nós atentarmos para isso. A prática da Saúde muito automatizada ou grandemente imbuída de tecnologia fez que se perdesse o caráter narrativo desse campo de atuação. A Medicina Narrativa vem resgatar, renovar e adaptar a novas instâncias as narrativas já presentes nas práticas convencionais. 
Além disso, o recurso a outras fontes de conhecimento e de outras narrativas pode acrescentar novos elementos a esse estudo e essa prática. Assim, Ciências Humanas e mesmo as assim chamadas Ciências Exatas podem acrescentar novos elementos narrativos ao âmbito Saúde/Doença. Também aspectos culturais os mais diversos podem trazer elementos enriquecedores para a Medicina Narrativa.
Além de todos esses fatores é importante relembrarmos os precedentes da Medicina Narrativa que vieram de estudos de “Literatura e Medicina” que chamaram a atenção de Dra. Rita Charon para as pontes existentes entre esses dois campos. Assim ela se expressou a respeito da criação do nome desse campo: “O nome ‘Medicina Narrativa’ veio à mim como um termo único para significar uma prática clínica configurada pela teoria e prática de ler, escrever, contar e receber histórias”. 
Outro aspecto interessante é assinalarmos que o que pode ser chamado como “Medicina Baseada em Narrativa” faz interfaces com a consagrada “Medicina Baseada em Evidências” (ver, por exemplo, artigo de Kalitzkus e Mathiessen de 2009).
A própria Medicina Baseada em Evidências tem uma janela aberta a aspectos narrativos. Conforme vemos abaixo no diagrama (Cochrane.org), a prática da Medicina Baseada em Evidências tem três aspectos que se interseccionam: as melhores evidências científicas, a capacidade clínica do profissional, os valores e expectativas do paciente.
               
Conforme a figura abaixo do British Medical Journal, outras palavras para abordar os mesmos três aspectos são: evidência científica relevante, julgamento clínico e valores e preferências do paciente.

Conforme vimos em ambos os quadros há espaços para a Medicina Baseada em Narrativa fazer interconexões com a Medicina Baseada em Evidências. Das três seções a que tem mais possibilidade de dar espaço à narrativa corresponde a “valores e preferências do paciente”. Neste campo, a abertura para que a relação profissional/paciente possa ser alimentada pela prática narrativa é notável. Também o campo do “julgamento clínico” pode se valer de prática narrativa que aprimore seu procedimento.
Agora, para aprofundarmos a discussão a respeito de Saúde/Doença, vamos abordar um tema que temos repetido periodicamente em vários cursos que é o “Conceito Ampliado de Saúde”. Para isso, vamos olhar o conceito de saúde a partir da tradição ocidental.
Primeiramente entre os Gregos.
Para Pitágoras (570-495 a.C.) e pitagóricos, para Hipócrates (460-370 a.C.) e seus seguidores, Saúde é o EQUILÍBRIO entre os humores do corpo (sangue, fleugma, bile negra, bile amarela) e entre os elementos da natureza (fogo, terra, ar, água).
Assim, os tratamentos que prescreviam eram: dietas, exercícios, meditação, música, etc.
Entre os Romanos, ao mesmo tempo em que se manteve a influência dessa tradição, atingindo Galeno, entre outros, surgiu um conceito de saúde que se sintetizou em uma frase proferida pelo poeta Juvenal no século I d.C.: “Mens sana in corpore sano”. Ou seja, mente sã em corpo são. Esta noção repete o conceito Grego, mas inserindo a ideia de mente e de corpo, indicando já uma divisão que séculos depois será atribuída a Descartes.
Sem querer entrar em outros tantos detalhes históricos, pois esse não é o escopo principal desta aula, vamos dar um salto mais adiante à transição do século XVII para o século XVIII.
Antes disso vamos mencionar uma frase bastante tradicional de origens que remontam a Hipócrates e os hipocráticos: “Não existem doenças, existem doentes”. Essa frase já foi atribuída a diversos autores, mas o fato é que ela acaba se reportando a Hipócrates e os hipocráticos, na medida em que se buscam seus precursores.
No século XVIII, Johann Peter Frank (1745-1821) deu início à Saúde Pública, no cuidado à população.
No início do século XIX, Bichat (1771-1802) lançou a ideia de “sistemas” em relação às partes do organismo.
Ainda no mesmo século Claude Bernard (1813-1878) criou a conceituação de meio interno e meio externo em relação aos seres vivos.
Rudolph Virchow (1821-1902) nesse mesmo século lançou a ideia de patologia celular, deslocando a noção de doença para as células do organismo.  
No século XIX Louis Pasteur (1822-1895) descobriu a correlação entre doenças e microrganismos, trazendo todo um novo paradigma para a medicina. 
Já no século XX, Walter Bradford Cannon (1871-1945) deu configuração ao conceito de Homeostase como equilíbrio entre meio interno e meio externo iniciado por Claude Bernard.
Também no século XX, Hans Selye (1907-1982) lançou a ideia de “stress”.
Temos também neste século: “A Saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Famosa frase de René Leriche (1879-1955).
Em meio ao caminhar desses conceitos, o processo de entendimento da saúde mental resumidamente caminhou de Pinel (1745-1826) a Freud (1856-1939) e Kraepelin (1856-1926), em um percurso entre conceituações mais ou menos organicistas.
Apesar disso tudo: “Mens sana in corpore sano” continua sendo uma maneira simples de expressar saúde, ao mesmo tempo em que mantém certa dicotomia.
Finalmente, em 1948, a Organização Mundial de Saúde lançou o Conceito de Saúde que tem sua aplicação geral como: “pleno BEM-ESTAR físico, mental e social”. Ou seja, já se tinha então a noção de que saúde não é apenas ausência de doença. Vê-se nessa conceituação a ideia de saúde como algo associado a “bem estar”. A situação de diversos traumas ligados às duas grandes guerras conduziu a uma política de promoção de “bem estar” às populações, de modo que a ideia de saúde se amplia de bem estar físico e mental (mens sana in corpore sano) para também uma ideia de “bem estar social”, o que implica a noção do coletivo, em que se incluem práticas de prevenção, como, por exemplo, vacinação, e de promoção de saúde pública.
No fim do século XX, o conceito de saúde da OMS torna-se insuficiente para compreender todas as condições de “bem-estar” e de “mal-estar” que surgem a partir dos anos 1960, quando, juntamente com os movimentos de contracultura, novos caminhos são propostos para configurar essas ideias, incluindo conceitos provindos de culturas orientais e indígenas. Portanto, buscaram-se formulações do conceito de saúde que pudessem abranger outras condições.
Na Conferência de Ottawa da OMS (1986) surgiu uma ideia de PROMOÇÃO DA SAÚDE, inserindo variáveis CULTURAIS no processo saúde/doença, bem como nessa ideia de promoção. A partir dessas ideias, também se procurou estudar as correlações entre saúde/doença e espiritualidade.
Assim, tem-se então um Conceito Ampliado de Saúde que contempla aspectos culturais ligados ao binômio saúde/doença.
No ano de 2001, elaboramos uma forma de trabalhar o Conceito Ampliado de Saúde a partir de um quadro do filósofo Ken Wilber, no livro “The Eye of Spirit”, onde ele apresenta um quadro a respeito dos campos do conhecimento humano. Esse quadro deu-nos a ideia de substituir os campos do conhecimento por campos de saúde, mantendo as colunas como interior e exterior e as linhas como individual e coletivo. Na intersecção entre esses diferentes campos têm-se então para o individual exterior o campo físico (ou biológico) da saúde; na intersecção entre interior e individual, têm-se a saúde psíquica (ou mental); no quadro equivalente ao coletivo exterior têm-se o campo “social” da saúde; na intersecção entre coletivo e interior têm-se o campo “cultural”. Temos então para o campo “físico” a dimensão “objetiva”; no campo “psíquico”, a dimensão “subjetiva”; no campo “social”, a dimensão “interobjetiva”, no campo “cultural” a dimensão “intersubjetiva”. Mais frequentemente existe a tendência de reducionismo da saúde/doença do indivíduo ao campo “físico”. No entanto, bem estar e mal estar podem provir de qualquer de um dos campos e pode influir os outros três no sentido de melhorar ou de piorar.

Ainda pode-se considerar a possibilidade de um quinto campo decorrente de todos os outros quatro que pode ser chamado de “campo ambiental”, onde se entende meio ambiente como o que diz respeito tanto ao interior como ao exterior dos indivíduos e das comunidades, bem como a ideia de “ambiência”, onde o meio ambiente ecológico encontra intersecção com o ambiente cultural.

A Medicina Narrativa se estabeleceu concomitantemente à ampliação do conceito de saúde na transição do século XX para o XXI.
Além disso, a construção e o aprimoramento COGNITIVO dos profissionais, a partir de narrativas, permitem a percepção de uma visão ampliada de saúde.


quinta-feira, 1 de junho de 2017

Parte 2 da aula 1: Curso "Medicina Narrativa: processo interdisciplinar no cuidado à saúde"


Conforme a Profa. Dra. Rita Charon, da Universidade de Columbia, a Medicina Narrativa é uma medicina praticada com competência narrativa para reconhecer, absorver, interpretar e ser tocado pelas histórias (estórias) de doenças (e de doentes).
A Medicina Narrativa busca:
-          Aumentar a capacidade de percepção clínica.
-          Levar a um cuidado mais humano, mais ético e mais efetivo.
A Medicina Narrativa provém dos seguintes campos:
- Humanidades e Medicina
- Cuidados Primários em Medicina
- Narratologia contemporânea (que é o estudo de estruturas e de elementos das narrativas)
- Estudos de relação médico-paciente.
- Literatura e Medicina
- Cuidado centrado no vínculo indivíduo/comunidade/profissional da saúde
O estudo da Medicina diz respeito ao estudo do ser humano. Tudo o que se estuda em Medicina, e além dela, vai, gradativamente, configurando o que se entende por “ser humano”.
Profissionais da saúde precisam de meios para:
-          Singularizar o cuidado ao paciente
-          Reconhecer/perceber a ética profissional e os deveres pessoais ao doente
-          Produzir “correlações terapêuticas” com pacientes, entre profissionais e com o público.
Hoje em dia, a falta de singularidade, humildade, responsabilidade, empatia pode ser provida, em parte, pela Medicina Narrativa.
A atividade da medicina narrativa é compatível com uma prática multiprofissional.
O que é multiprofissional pode ser multidisciplinar ou interdisciplinar. Cada um desses conceitos tem suas particularidades e tem suas intersecções.
Multidisciplinaridade: é o que já está presente desde Aristóteles. Corresponde a cada área do Conhecimento com sua linguagem e seu método.
Interdisciplinaridade: permite uma permuta de linguagens e de métodos, ou ainda a adoção da mesma linguagem e método por diferentes campos do Conhecimento.
Transdisciplinaridade: diz respeito mais a uma “metalinguagem” e “metamétodos”, ou seja, transversaliza diferentes campos do Conhecimento, mas ao mesmo tempo sem o tipo de envolvimento da interdisciplinaridade, já que aborda “linguagem e método” do “lado de fora”, ou seja sem submeter-se às condições e normas de linguagem e método dos campos. A transdisciplinaridade também inclui “culturalidade”, ou seja, admite no processo de Conhecimento as variáveis culturais. Também a transdisciplinaridade, por suas características, concilia paradoxos.
São 3 os pilares da transdisciplinaridade:
1 –Níveis de Realidade.
Deve-se admitir que a abordagem do Real pode acontecer em diferentes níveis de realidade, de modo que em cada nível há condições próprias. Não se pode reduzir todo o fenômeno a apenas um nível de realidade. Assim, este pilar também propõe uma atitude de “anti-reducionismo”. Se, por exemplo, levarmos para o âmbito do ser humano, podemos ver que “ser humano” não se reduz ao nível da realidade biológica, mas há outros níveis de realidade, como cultural, social, entre outros, que vão compor a realidade do indivíduo.
2 – Complexidade.
A Complexidade também é anti-reducionista.
Uma forma de entender a complexidade é a frase:      
“O todo é mais do que a soma das partes”.  Assim, mesmo que se juntem todas as partes não se tem um todo. Isso porque o todo implica em alguma coisa a mais do que apenas se ter as partes. Passa a estar presente também o vínculo entre as partes, os fatores que unem as partes, a energia, os desdobramentos provenientes da existência desse todo que articula essas partes.                  
3 – Terceiro incluído.
O terceiro incluído segue uma lógica diferente do “terceiro excluído”. Neste, em uma configuração lógica onde A e B não se correlacionam, o terceiro excluído corresponde a um não-A e não-B.
Já no terceiro incluído não-A e não-B pode implicar em um C que possa harmonizar não-A e não-B em convivência simultânea. Os autores dão como exemplo dessa situação a conceituação física quântica de “quanta”. Isso acaba resolvendo a dicotomia entre as possibilidades de um fóton ser partícula ou de ser onda. No quanta essas duas possibilidades convivem em um nível de realidade acima de ambos. Assim admite paradoxos. Vai além dos pares de opostos.
Como uma espécie de quarto pilar temos a culturalidade já citada.
A Medicina Narrativa é:
-          Um reforço à anamnese tradicional
-          Uma recuperação do valor dessa anamnese no século 21.
-          Educa uma escuta focada e o olho clínico que direcionam as decisões baseadas em evidência.
Protocolos médicos são boas ferramentas em mãos de quem raciocina a respeito de sua aplicação, adapta-os à singularidade do paciente e de sua cultura.
Isso é possível a partir de uma boa anamnese, e do exercício narrativo.
A Medicina Narrativa pode aprimorar no profissional de saúde a percepção de quando e quanto deve acrescentar de dados à anamnese, permitindo conhecer aspectos da vida do paciente que podem interferir no processo saúde/doença, e usualmente passam despercebidos.