Narrativa e o binômio Saúde/Doença
Se pensarmos em uma construção de
conceitos, quais palavras podem expressar “Saúde” e “Doença”?
Como construir a Narrativa de
Doença e de Saúde?
As narrativas convencionais de
doença e de saúde incluem: Anamnese, Exame Físico, Diagnóstico e Terapêutica. Eventualmente alguém poderia perguntar se a
narrativa não corresponde apenas à anamnese. Em um primeiro momento seria
pensado dessa forma, já que a história clínica tradicional corresponde à
anamnese. No entanto, os outros itens também possuem cada um sua “narrativa
própria”.
O Exame Físico tem uma narrativa
que, em um primeiro momento, já vem contada pelo próprio corpo do paciente na
maneira como ele se apresenta, por inteiro, não apenas um corpo biológico, mas
também um corpo com sua dinâmica, seu comportamento, seus trejeitos, sua
narrativa social e cultural expressa na roupa que o cobre e em suas atitudes e
expressões. Outra narrativa do corpo é aquela do Exame Físico propriamente
dito. A apresentação inicial do corpo do paciente já tem em si uma narrativa
que “é lida” pelo profissional de saúde através da lente de seu treinamento
para esse tipo de leitura. A partir do Exame Físico propriamente dito uma outra
narrativa se estabelece, a qual será relatada no prontuário médico, seguindo um
determinado padrão de linguagem que tem também seus parâmetros de espaço/tempo,
sendo uma reinterpretação, uma releitura daquela história clínica, que vai
complementá-la, ou questioná-la.
O Diagnóstico também implica em
outra narrativa. O discurso do Diagnóstico é sintetizado, muitas vezes, em um
diagnóstico sindrômico, cujas palavras simbolizam, significam uma narrativa
construída a partir do conhecimento médico. Ao mesmo tempo o Diagnóstico é uma
espécie de Epílogo da narrativa clínica, como que dando um desfecho na
somatória das narrativas que o precedem.
A Terapêutica tem uma narrativa que
se desdobra em várias partes. Há um discurso inicial a respeito do que consta
em protocolos, manuais, consensos adequados aos diagnósticos obtidos. Mas
segue-se o caráter de singularidade do próprio paciente, na medida em que a
terapêutica padronizada precisa ser adaptada às condições individuais do
paciente. Segue-se ainda uma outra parte que é a terapêutica cotidiana
propriamente dita, que diz respeito ao dia a dia da ingesta ou aplicação de
medicamentos.
Vemos então que a própria Medicina
ou ainda os Cuidados da Saúde convencionais têm já sua narrativa, se nós
atentarmos para isso. A prática da Saúde muito automatizada ou grandemente
imbuída de tecnologia fez que se perdesse o caráter narrativo desse campo de
atuação. A Medicina Narrativa vem resgatar, renovar e adaptar a novas
instâncias as narrativas já presentes nas práticas convencionais.
Além disso, o recurso a outras
fontes de conhecimento e de outras narrativas pode acrescentar novos elementos
a esse estudo e essa prática. Assim, Ciências Humanas e mesmo as assim chamadas
Ciências Exatas podem acrescentar novos elementos narrativos ao âmbito
Saúde/Doença. Também
aspectos culturais os mais diversos podem trazer elementos enriquecedores para
a Medicina Narrativa.
Além de todos esses fatores é importante relembrarmos os
precedentes da Medicina Narrativa que vieram de estudos de “Literatura e
Medicina” que chamaram a atenção de Dra. Rita Charon para as pontes existentes
entre esses dois campos. Assim ela se expressou a respeito da criação do nome
desse campo: “O nome ‘Medicina
Narrativa’ veio à mim como um termo único para significar uma prática clínica
configurada pela teoria e prática de ler, escrever, contar e receber
histórias”.
Outro aspecto interessante é
assinalarmos que o que pode ser chamado como “Medicina Baseada em Narrativa” faz interfaces com a consagrada “Medicina Baseada em Evidências” (ver, por exemplo, artigo de Kalitzkus e
Mathiessen de 2009).
A própria Medicina Baseada em
Evidências tem uma janela aberta a aspectos narrativos. Conforme vemos abaixo
no diagrama (Cochrane.org), a prática da Medicina Baseada em Evidências tem
três aspectos que se interseccionam: as melhores evidências científicas, a
capacidade clínica do profissional, os valores e expectativas do paciente.
Conforme a figura abaixo do British Medical Journal, outras
palavras para abordar os mesmos três aspectos são: evidência científica
relevante, julgamento clínico e valores e preferências do paciente.
Conforme vimos em ambos os quadros há espaços para a Medicina
Baseada em Narrativa fazer interconexões com a Medicina Baseada em Evidências.
Das três seções a que tem mais possibilidade de dar espaço à narrativa
corresponde a “valores e preferências do paciente”. Neste campo, a abertura
para que a relação profissional/paciente possa ser alimentada pela prática
narrativa é notável. Também o campo do “julgamento clínico” pode se valer de
prática narrativa que aprimore seu procedimento.
Agora, para aprofundarmos a discussão a respeito de
Saúde/Doença, vamos abordar um tema que temos repetido periodicamente em vários
cursos que é o “Conceito Ampliado de Saúde”. Para isso, vamos olhar o conceito
de saúde a partir da tradição ocidental.
Primeiramente entre os Gregos.
Para Pitágoras (570-495 a.C.) e
pitagóricos, para Hipócrates (460-370 a.C.) e seus seguidores, Saúde é o
EQUILÍBRIO entre os humores do corpo (sangue, fleugma, bile negra, bile
amarela) e entre os elementos da natureza (fogo, terra, ar, água).
Assim, os tratamentos que
prescreviam eram: dietas, exercícios, meditação, música, etc.
Entre os Romanos, ao mesmo tempo em
que se manteve a influência dessa tradição, atingindo Galeno, entre outros,
surgiu um conceito de saúde que se sintetizou em uma frase proferida pelo poeta
Juvenal no século I d.C.: “Mens sana in
corpore sano”. Ou seja, mente sã em corpo são. Esta noção repete o conceito
Grego, mas inserindo a ideia de mente e de corpo, indicando já uma divisão que
séculos depois será atribuída a Descartes.
Sem querer entrar em outros tantos
detalhes históricos, pois esse não é o escopo principal desta aula, vamos dar
um salto mais adiante à transição do século XVII para o século XVIII.
Antes disso vamos mencionar uma
frase bastante tradicional de origens que remontam a Hipócrates e os
hipocráticos: “Não existem doenças, existem doentes”. Essa frase já foi
atribuída a diversos autores, mas o fato é que ela acaba se reportando a
Hipócrates e os hipocráticos, na medida em que se buscam seus precursores.
No século XVIII, Johann Peter Frank
(1745-1821) deu início à Saúde Pública, no cuidado à população.
No início do século XIX, Bichat
(1771-1802) lançou a ideia de “sistemas” em relação às partes do organismo.
Ainda no mesmo século Claude
Bernard (1813-1878) criou a conceituação de meio interno e meio externo em
relação aos seres vivos.
Rudolph Virchow (1821-1902) nesse
mesmo século lançou a ideia de patologia celular, deslocando a noção de doença
para as células do organismo.
No século XIX Louis Pasteur
(1822-1895) descobriu a correlação entre doenças e microrganismos, trazendo
todo um novo paradigma para a medicina.
Já no século XX, Walter Bradford
Cannon (1871-1945) deu configuração ao conceito de Homeostase como equilíbrio
entre meio interno e meio externo iniciado por Claude Bernard.
Também no século XX, Hans Selye
(1907-1982) lançou a ideia de “stress”.
Temos também neste século: “A Saúde
é a vida no silêncio dos órgãos”. Famosa frase de René Leriche (1879-1955).
Em meio ao caminhar desses
conceitos, o processo de entendimento da saúde mental resumidamente caminhou de
Pinel (1745-1826) a Freud (1856-1939) e Kraepelin (1856-1926), em um percurso
entre conceituações mais ou menos organicistas.
Apesar disso tudo: “Mens sana in
corpore sano” continua sendo uma maneira simples de expressar saúde, ao
mesmo tempo em que mantém certa dicotomia.
Finalmente, em 1948, a Organização
Mundial de Saúde lançou o Conceito de Saúde que tem sua aplicação geral como:
“pleno BEM-ESTAR físico, mental e social”. Ou seja, já se tinha então a noção de que saúde não é apenas ausência de doença. Vê-se nessa
conceituação a ideia de saúde como algo associado a “bem estar”. A situação de
diversos traumas ligados às duas grandes guerras conduziu a uma política de
promoção de “bem estar” às populações, de modo que a ideia de saúde se amplia
de bem estar físico e mental (mens sana
in corpore sano) para também uma ideia de “bem estar social”, o que implica
a noção do coletivo, em que se incluem práticas de prevenção, como, por
exemplo, vacinação, e de promoção de saúde pública.
No fim do século XX, o conceito de saúde da OMS torna-se insuficiente para compreender todas as
condições de “bem-estar” e de “mal-estar” que surgem a partir dos anos 1960,
quando, juntamente com os movimentos de contracultura, novos caminhos são
propostos para configurar essas ideias, incluindo conceitos provindos de
culturas orientais e indígenas. Portanto, buscaram-se formulações do conceito
de saúde que pudessem abranger
outras condições.
Na Conferência de Ottawa da OMS
(1986) surgiu uma ideia de PROMOÇÃO DA SAÚDE, inserindo
variáveis CULTURAIS no processo saúde/doença, bem como nessa ideia de promoção.
A partir dessas ideias, também se procurou estudar as correlações entre saúde/doença
e espiritualidade.
Assim, tem-se então um Conceito
Ampliado de Saúde que contempla aspectos culturais ligados ao binômio
saúde/doença.
No ano de 2001, elaboramos uma
forma de trabalhar o Conceito Ampliado de Saúde a partir de um quadro do
filósofo Ken Wilber, no livro “The Eye of Spirit”, onde ele apresenta um quadro
a respeito dos campos do conhecimento humano. Esse quadro deu-nos a ideia de
substituir os campos do conhecimento por campos de saúde, mantendo as colunas
como interior e exterior e as linhas como individual e coletivo. Na intersecção
entre esses diferentes campos têm-se então para o individual exterior o campo
físico (ou biológico) da saúde; na intersecção entre interior e individual,
têm-se a saúde psíquica (ou mental); no quadro equivalente ao coletivo exterior
têm-se o campo “social” da saúde; na intersecção entre coletivo e interior
têm-se o campo “cultural”. Temos então para o campo “físico” a dimensão
“objetiva”; no campo “psíquico”, a dimensão “subjetiva”; no campo “social”, a
dimensão “interobjetiva”, no campo “cultural” a dimensão “intersubjetiva”. Mais
frequentemente existe a tendência de reducionismo da saúde/doença do indivíduo
ao campo “físico”. No entanto, bem estar e mal estar podem provir de qualquer
de um dos campos e pode influir os outros três no sentido de melhorar ou de
piorar.
Ainda pode-se considerar a possibilidade de um quinto campo
decorrente de todos os outros quatro que pode ser chamado de “campo ambiental”,
onde se entende meio ambiente como o que diz respeito tanto ao interior como ao
exterior dos indivíduos e das comunidades, bem como a ideia de “ambiência”,
onde o meio ambiente ecológico encontra intersecção com o ambiente cultural.
A Medicina Narrativa se estabeleceu
concomitantemente à ampliação do conceito de saúde na transição do século XX
para o XXI.
Além disso, a
construção e o aprimoramento COGNITIVO dos profissionais, a partir de narrativas, permitem a percepção de
uma visão ampliada de saúde.