sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Biografia do Professor Ascendino Reis

Alguns aspectos biográficos do professor Ascendino Ângelo dos Reis
(falecido em 14 de setembro de 1926)
(retirado do livro Médicos de Outrora do prof. Rubião Meira da Faculdade de Medicina da USP, escrito em 1936/37).
              Entre os velhos professores da Faculdade de Medicina, destacou-se sempre pela sua atitude justiceira e pelo seu vasto saber o Ascendino Ângelo dos Reis.
              Era enciclopédico. Trabalhador como poucos. Ilustrado como professor, os alunos o achavam “cacete”, porque profundo e minucioso. Ensinava “farmacologia e arte de formular. Suas aulas tinham um cunho singular. Gostava que os alunos apresentassem objeções sobre o que ia discorrendo, o que fazia às vezes uma grande algazarra, tal o número de propostas, feitas não com o intuito de aprender, mas com o desejo de atrapalhar o mestre. As mais disparatadas coisas saiam em cena, e enquanto uns se ocupavam na discussão com o professor, outros distraiam-se, lendo jornais do dia ou mesmo jogando, habitualmente pôquer, falando alto, contando pilherias. Uma balburdia, em que se sentia, pelo menos, a vida da juventude, aliás desrespeitosa. Ficava aborrecido quando a aula era silenciosa – isto o incomodava demasiado, e por castigo repisava a matéria, fazia perguntas, desejando que a turbulência aparecesse. Esta era a vingança dos moços – manifestarem-se em silêncio, quebrando a linha habitual de barulho – coisas da mocidade, que é sempre a mesma, sempre impenitente.   
              Uma vez, em aula, quando prelecionando sobre os desinfetantes intestinais, anunciou que ia falar sobre os terminados em ol, como o salol, o benzonaftol, o betol... ao que um estudante gaiato interrompeu: “deve-nos falar, então, também sobre o sol”. Retrucou: “pois falarei sobre o sol” e por uma hora e meia discorreu, demonstrando conhecimentos profundos de astronomia sobre o astro-rei. Embasbacou a rapaziada que não mais entendeu provocar a ilustração do mestre.
              Suas aulas passavam sempre da hora; para ele o horário era uma ficção. Embrenhava-se no assunto e ia por ali afora. Era incansável. Uma feita, a mocidade revoltou-se e não compareceu à aula prática, a que se seguiria a dissertação oral. O professor, embora bondoso, irritou-se e marcou zero na turma toda, nota que representa grande castigo. Levaram os alunos a questão à Congregação. Os debates nesta foram intensos. O Dr. Ascendino Reis levantou-se antes do julgamento, tendo de defendido com raro brilho e posto a questão nas mãos de seus pares. Era uma questão melindrosa e se não fosse eu que tomei a defesa do Dr. Ascendino, na hora da resolução, não sei o que teria havido; no mínimo a saída daquele nosso ilustrado Colega da Faculdade, o que seria sem dúvida grande perda a se lamentar. Com o apoio do Dr. Edmundo Xavier pudemos vencer a questão e tudo continuou como dantes. Mas foi um momento desagradável aquele. Creio que em vida o Dr. Ascendino não soube da minha atuação naquele momento. Eu nada lhe disse e acredito que sempre me ignorou. Tratava-me, entretanto, com grande distinção e amizade, aquela amizade que se tem para com os novos. Devo-lhe palavras de entusiasmo que nunca esqueci.
              Quando fui nomeado professor de clinica propedêutica, dei a lição inaugural em presença de grande auditório, professores, alunos, representantes do governo, amigos. O Prof. Ascendino lá estava, abraçou-me e felicitou-me. Dois dias depois, a convite do Centro Oswaldo Cruz, fiz uma conferência no “Instituto Histórico e Geográfico” sobre o “Contingente brasileiro na evolução da medicina”.
              Terminada que foi, veio o Prof. Ascendino, que havia assistido, abraça-me e disse as seguintes palavras que guardei sempre no meu espírito e as revivo agora com gratidão: “Não sei a quem felicitar, se ao colega, se à Faculdade, tão brilhantes suas duas orações”. Para um moço que eu era naquela ocasião foi a maior conquista que eu havia realizado, receber a saudação sincera daquele Mestre, cheio de serviços à medicina, às letras e à ciência.
              Foi uma das forças que me impulsionou e me fez caminhar na senda do trabalho e do estudo.
              Dispunha o Dr. Ascendino de grande clinica, que só fazia a pé e de bonde. Nunca o vi de tilburi senão raramente nem de automóvel. Gostava de andar, e nos lugares em que se encontrava, estava sempre a ler. Não largava os livros. Estudava muito e sabia muito. Infelizmente não deixou escrito que demonstrasse a sua cultura rara em nosso meio. Tem sido este o nosso grande erro. Trabalhamos, estudamos e não deixamos aos posteros os resultados de nossas observações. É a luta pela vida que nos manieta, mais que o espírito egoístico. Vive-se muito intensamente na labuta diária e quando se se recolhe à tarde é para descanso e não para escrever, ou estudar. É penosa a vida do médico – e, ou trabalha muito e não tem tempo para outras cogitações, ou nada faz e a inércia física traz a inércia mental. Motivo é esse pelo que nossos mestres têm deixado poucos trabalhos por onde se possa avaliar de seu merecimento. Felizmente há exceções honrosas, que vêm para confirmar o que estou a dizer. Ascendino foi um desses. Estudou muito, ensinou sempre, observou constantemente e foi-se sem deixar escrito o que viu e o que sabia e não era pouco, ao contrário, era bastante. Foi médico da Cia. Inglesa e cuidava de todos os seus doentes com especial carinho. Depois que faleceu tenho entrado em casas em que ele era considerado até como membro da família e a recordação que se faz do clínico enche-me o ânimo de satisfação, pois que a sua figura é constantemente recordada e seus ensinamentos perduram.
              Deixou na Faculdade também a homenagem de apreço a seu reconhecido saber e ninguém ali esquece sua figura austera, de homem antigo, que não ria muito, falava constantemente de tudo e abordava com superioridade qualquer assunto. Formou-se também em Direito, mas nunca se dedicou ao exercício da profissão de advogado. Foi sempre durante a vida médico, e o foi também do exército, e professor. Antes de sê-lo na Faculdade o era na Escola Normal da Capital, onde prelecionava se me não engano sobre geografia e cosmografia, obtendo por concurso essa cadeira. Por essa rápida apreciação de sua vida fica em foco na medicina paulista a sua figura, como a de um verdadeiro sábio que honrou a ciência e soube interpretá-la, aplicando seus vastos conhecimentos para defender a saúde e praticar o bem.