Este curso está inserido no Setor de Neuro-Humanidades da
Disciplina de Neurologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal
de São Paulo.
O Setor de Neuro-Humanidades trabalha com as intersecções
entre Neurociências e Ciências Humanas. No sentido amplo do termo,
Neurociências, no plural, é uma designação que engloba os diversos campos de
estudo com o prefixo “neuro”, além da Neurociência, no singular, propriamente
dita, que se refere mais frequentemente à Ciência Básica de Pesquisa assim
denominada.
Então, Neuro-Humanidades diz respeito a interfaces entre
áreas “Neuro” e os campos de estudo como Filosofia, História, Sociologia,
Antropologia, Letras, Literatura, etc. Portanto, trata-se de um campo
“interdisciplinar”.
Neste campo, trabalhamos com algumas ideias básicas que nos
orientam. Quais sejam:
1 - Para nós não existe processo ou evento humano que seja
“a-histórico” ou “a-psicológico”, ou seja, não se pode desvencilhar qualquer
campo do Conhecimento da História e da Psicologia. A história humana e a psique
humana estão em qualquer processo humano. Afirma-se isso porque, eventualmente
pensa-se que a Ciência (principalmente as assim denominadas Hard Sciences) seria algo que se faria
por si, acumulando conhecimentos científicos, independentemente da história
humana e da psique humana, sem depender de outros fatores que não seus próprios
parâmetros.
2- Também em Neuro-Humanidades colocamos que não temos, nem a
única, nem a última palavra sobre qualquer coisa. Os diversos campos de
Conhecimento podem usar os mesmos termos para significar coisas diferentes
dentro de linguagem e contextos próprios da cada um desses campos. Deve-se
situar o contexto e outros fatores dentro dos quais se esteja inserindo
determinado termo ou conceito.
3- Além disso, frisamos que não temos todas as respostas. Se
ao fim de determinado estudo chegarmos a formular alguma pergunta, já pode ser
um avanço em nosso estudo. O filósofo Henri Bergson dizia que quando
formularmos nossos próprios problemas, seremos livres. Ele quis dizer que, em
geral, somos educados para trazer soluções a problemas que já nos chegaram com
esse título, “problema”, e já assim estruturados. Precisaríamos aprender a
verificar se realmente se trata de um problema, e estruturar a configuração do
problema. Assim também as perguntas. Ao se estudar algum assunto, não
necessariamente deve-se chegar a todas as respostas, mas eventualmente
descobrir ou propor caminhos.
4- Em Neuro-Humanidades interessam-nos mais os vínculos, as
ligações, os processos entre as coisas, do que as próprias coisas. Mais os
processos do que os fatos. Em nossa cultura temos forte influência do
Positivismo do século XIX. A ciência positivista baseia-se na constatação de
fatos e que esses fatos seriam indiscutíveis e que se caminha de comprovação em
comprovação crescente na acumulação de conhecimento. Mas, a formação atual do
Conhecimento, principalmente do Conhecimento Médico vem a partir da Medicina
Baseada em Evidências, evidências essas que não são necessariamente fatos, mas
decorrências de estudos diversos associados a Bioestatística e Epidemiologia. Na
interface de Neuro e Humanidades o foco mais nos processos do que nos fatos
procura estudar elementos menos visualizados nos estudos habituais.
5- Finalmente, a “linguagem”. Para nós a linguagem é
fundamental, não só a linguagem verbal, mas todas as formas de linguagem. No
entanto, a linguagem verbal assume importância singular, na medida em que com
ela se constrói toda forma de Conhecimento, incluindo o conhecimento “Neuro”. A
linguagem precede até mesmo a noção de conceituações neurológicas básicas.
Antes vem a linguagem, depois vêm os conceitos. “o Ser Humano, a Linguagem, a Cultura”
são três elementos associados desde o início de sua existência. Cada um desses
três fatores está fortemente e indissoluvelmente ligado aos outros dois. Comer, beber, dormir, procriar são atividades
básicas das diferentes espécies animais; mas no ser humano cada um desses
fatores está sempre marcado pela Cultura, por elementos culturais; a Cultura
que é fruto da convivência comunitária de seres humanos desde os primórdios em
que se possa referir a “ser humano”. A conceituação de “ser humano” sempre
implica em “comunidade”, de onde provém “a cultura”. Associada a ambos está a
“linguagem”.
Assim, a linguagem é a principal ferramenta, mas também pode
ser obstáculo ao Conhecimento. Sua capacidade, suas possibilidades são também
seus limites.
Para ilustrar isso podemos lembrar uma passagem de Thomas
Kuhn em sua coletânea póstuma “Depois da Estrutura”. Ele, que tinha formação
como físico, ao estudar Aristóteles, achou estranho o conceito aristotélico de
“movimento”. Em primeiro momento achou que Aristóteles nada entendia de Física.
Mas depois ele veio a entender que “movimento” para Aristóteles tinha outro sentido:
para ele, por exemplo, a metamorfose na natureza, de larva em borboleta, era um
“movimento”. Ou seja, a ideia de movimento englobava também formas de
transformação. A partir daí, Kuhn passou a respeitar Aristóteles e esse foi um
dos elementos que o levaram a configurar sua ideia de “incomensurabilidade de
paradigmas”, na medida em que eles usem diferentes linguagens e métodos.
Outro aspecto sobre a linguagem diz respeito à importância da
metáfora para o Conhecimento. A metáfora permite a passagem de palavras entre
diferentes campos do Conhecimento, mas com sentidos associados, não exatamente
os mesmos de seu campo de origem. Podemos pensar, por exemplo, nas diversas
passagens da palavra “célula” desde sua origem como “pequena cela” quando vista
pela primeira vez pelo microscópio por Robert Hooke, que associou o que via a “pequenos
cômodos”, ou “pequenas celas” que chamou então de células. Daí para diante esse
termo percorre diversos campos do Conhecimento e mesmo da linguagem coloquial.
Tendo visto esta introdução a respeito de alguns conceitos
básicos para os estudos em Neuro-Humanidades, passemos então a falar da
Medicina Narrativa como uma prática interdisciplinar na área da Saúde.
Ao falarmos de “Interdisciplinaridade” devemos entender esse
termo. Ele costuma ser estudado com os termos Multidisciplinaridade e
Transdisciplinaridade. Multidisciplinaridade é uma associação de disciplinas
que segue um modelo que se iniciou com Aristóteles, embora ele mesmo não usasse
esse termo. Essa é uma conceituação que surge no século XX, a respeito do
Conhecimento no sentido amplo do termo. Na Multidisciplinaridade cada
disciplina fica com seu método e sua linguagem, havendo apenas algum contato
entre disciplinas. É o modelo tradicional, convencional da maioria das escolas.
Já a Interdisciplinaridade implica em uma permuta de linguagens e métodos. A Transdisciplinaridade
não é um degrau acima de Multi e Interdisciplinaridade. A Transdisciplinaridade
transversaliza as outras duas formas de associação de disciplinas, de modo que
trabalha mais com uma espécie de metalinguagem e de “metamétodo”; na Transdisciplinaridade
a Cultura, ou a “Culturalidade” sempre é levada em consideração.
Visto isso, afirmar que a Medicina Narrativa é uma área
interdisciplinar implica em que favorece a permuta de linguagens e métodos
entre diferentes áreas do Conhecimento ligadas à saúde. Ao falarmos área da
Saúde também podemos ampliar essa designação para saúde/doença, na medida em
que ambas têm sua fundamentação de forma mútua, embora não sejam exatamente
equivalentes em sentido oposto mutuamente.
A ideia de saúde/doença surgiu para o ser humano a partir da
constituição do próprio “ser humano”, naqueles primórdios já referidos, em que
se tem Ser Humano, Linguagem e Cultura surgindo associados. Dessa forma, a
percepção de “sofrimento e dor” passou a ser algo presente a partir do momento
em que se tem “Ser Humano no Mundo”. Pode-se eventualmente alegar que os
animais também sofrem; o que é certo. Mas, mesmo esta conceituação vem do ser
humano que pensa a esse respeito. Assim a percepção e elaboração de alguma
coisa que passa a ser nomeada como “sofrimento ou dor” é algo próprio do ser
humano. “Nomear” é algo próprio do ser humano, como já foi determinado a Adão
no Gênesis que nomeasse todos os animais (usamos este exemplo simbólico sem querer-se
referir a quaisquer formas de crença). Esse atributo verbal é bastante próprio
do ser humano. Assim também no binômio saúde/doença.
Frisamos que sempre ensinamos que “não existem doenças,
existem doentes”. Isso significa que doenças são resultado da abstração médica
a partir de sinais e sintomas. Sinais e sintomas similares podem significar uma
doença em um século e outra doença em outro, porque ambas são construídas a
partir do contexto histórico presente de cada uma.
Assim como o ser humano “nomeia” com sua linguagem verbal,
mas também a partir da percepção de outras linguagens, ele discorre verbalmente
a respeito dos eventos que o cercam. Usualmente e inicialmente a partir de
noções de espaço e de tempo. Sempre o ser humano narra sucessivamente e
comparativamente os eventos de sua vida e de sua comunidade desde os tempos
primordiais. Assim se constituíram as narrativas. Entre elas, as narrativas das
doenças. Talvez, paradoxalmente, as narrativas de doenças tenham precedido as
narrativas de saúde, já que na medicina as doenças são abstrações. No entanto,
em tempos primordiais as “doenças-narrativas” tinham certos significados dentro
do mundo cotidiano dos seres humanos de modo algo diferente da conceituação
científica de doença.
Deixemos este debate para outra oportunidade. Agora
comentemos um pouco sobre Medicina Narrativa.
O termo Medicina Narrativa foi criado pela Profa. Dra. Rita
Charon, professora de Medicina na Columbia University em Nova York, no ano
2000. A criação desse termo veio após longa vivência como médica e professora,
bem como a partir de contato com área da Literatura, onde fez Doutorado. No ano
de 2009 ela teve aprovado o programa de Mestrado em Medicina Narrativa na mesma
Universidade.