sábado, 14 de outubro de 2017

O Movimento Slow Medicine ou “Medicina sem Pressa” e o Período Pós-Pós-Moderno da História


     A História da Medicina a partir de Hipócrates tem 2.500 anos. Se considerarmos o tempo anterior com os precursores de Hipócrates, ou mesmo com os egípcios e outros povos, pode-se ir mais longe.
     No transcorrer da História da Humanidade, a Medicina em grande parte acompanhou o contexto histórico em que acontecia, e em menor parte, tinha suas próprias peculiaridades.
     A maneira como nós olhamos para a História não aconteceu de forma espontânea, ou involuntária, mas foi construída a partir da reflexão de determinadas pessoas a respeito do passado e suas correlações com diversos fatores.
     Assim, a “periodização histórica” foi elaborada inicialmente por Petrarca (1304-1374) e Leonardo Bruni (1370-1444), nos séculos XIV e XV, ainda no Período depois conhecido como Idade Média. Eles consideraram a Idade Antiga como um Período Clássico Greco-Latino, depois teria vindo um Período que eles consideraram como de certa obscuridade do  conhecimento. Petrarca, como o iniciador do que viria a ser considerado (no século XIX) como “Renascimento” (embora alguns já usassem termo similar no século XV), já estava moldando o que se tornaria conhecida como “Idade das Trevas”, principalmente por conta dos Iluministas e Pós-Iluministas.
     Na verdade, qualquer Era, ou Idade, é das Trevas e da Luz.
     Essa maneira de divisão da História acabou sendo mais reformulada por Cristoph Cellarius (1634-1707) em 1702, ou seja, no início do século XVIII.
     Evidentemente, com o passar do tempo, outros detalhamentos foram acrescentados a essa periodicidade. Ela pode ser considerada como uma espécie de base para raciocinar, mas há muitas críticas a respeito de uma visão engessada da História, como se ela fosse facilmente linear e determinada por determinados fatos. Atualmente, novos estudos, pesquisas, descobertas, trazem novas noções a respeito da História.
     Como dizia Marc Bloch (1886-1944) a História é: “O presente explicando o passado e o passado explicando e presente”. Assim, é um estudo vivo, contínuo, dinâmico e não apenas uma descrição acabada do passado.
     Voltando à periodização histórica. A Era iniciada em 1453, com a Tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos, passou a ser chamada de Era Moderna. Além desse fato, também caracterizam o início dessa Idade Moderna: as Navegações, a Reforma religiosa, a invenção da Imprensa, a disseminação da invenção/descoberta da pólvora, o Renascimento Conhecimento Clássico Greco-Latino, Mercantilismo, entre outros fatores.
     Têm-se aí o uso da palavra “Moderna”. Essa palavra “moderna”, ou “moderno”, inicialmente foi utilizada com o sentido que usamos hoje pelo sábio romano Cassiodoro, no século VI, quando, ao voltar de exílio no exterior de Roma, constatou que nessa cidade ninguém mais entendia a língua grega. Então exclamou: “Vivemos em tempos modernos”.  “Moderno”, vem de “modo” em latim e se refere a tempos verbais. A palavra “moderno” passou a ser utilizada com o sentido de algo que está acontecendo agora, algo novo, etc. Na Idade Média ainda foi usado dessa forma por alguns comentadores do tempo de Carlos Magno e posteriormente.
     Portanto, quando se chama uma Era de Idade “Moderna”, está-se querendo caracterizar como uma idade de inovações, invenções, descobertas, conhecimento, etc., para se opor à Idade Média. Mas, por outro lado, na Idade chamada de “Moderna”, também aumentou e foi praticamente oficializada a Escravidão no Ocidente; aumentou a Inquisição religiosa, a Ciência Moderna nascente deu vazão à conceituação de raças e seu consequente preconceito; surgiram as colônias dos Estados europeus. Assim, a chamada Idade Moderna também teve suas trevas...
     Continuemos com o uso do termo “moderno”.
     A partir da Revolução Francesa, em 1789, tem-se o início da Idade que foi chamada de Idade Contemporânea, com suas subdivisões.
     O termo “Contemporâneo” dá ideia de que é aquilo que “vivemos agora”. Na medida em que o tempo passe, é possível que se considere que a Revolução Francesa e suas consequências, bem como suas correlações, deixem de ser consideradas “contemporâneas”. Mas, ainda há muitos elementos presentes ainda que podem favorecer a manutenção desse conceito de forma expandida, ampla.
     Ao mesmo tempo em que acontecia a Revolução Francesa, outros processos históricos também ocorriam. A Revolução Americana (um pouco antes, em 1776). A Revolução Industrial, mudando o processo de produção de artesanal para a possibilidade de um primeiro modelo de “produção em série”; isso levou ao deslocamento de pessoas da área rural para a área urbana.
     De 1800 a 1950, temos um período que passou a ser chamado de Período Moderno, para diferenciar da Idade Moderna.
     Esse Período Moderno teve como características iniciais: a formação do Estado-Nação, depois das Invasões Napoleônicas (cada Estado com uma língua, uma bandeira, um hino); a acentuação da Revolução Industrial; a transformação da Ciência em “profissão”; o desenvolvimento tecnológico; novas descobertas na Medicina; a criação da Universidade Moderna, a partir de 1810, com a fundação da Universidade de Berlim, por Wilhelm von Humbolt, quando, finalmente, os laboratórios que só existiam nas Academias, foram incorporados às Universidades, que transmitiam um Conhecimento tradicional, algo distante das descobertas das Academias. Esse modelo de Universidade se espalhou pelo mundo e caracteriza a Universidade Moderna. Ainda nesse período surgiu o Romantismo, como uma reação a certo sufoco e perda de tradições locais pelo tipo de nacionalismo do Estado-Nação (embora o próprio Romantismo tenha algo de nacionalista, no sentido de resgatar origens) e como reação ao recente poder da Ciência (como se pode ver em Frankenstein de Mary Shalley e outros similares). Assim, no Período Moderno também vieram Realismo, Impressionismo, Modernismo, Expressionismo, Surrealismo, etc., com seus equivalentes nas diversas Artes, seja Literatura, Música, Pintura, etc.
     Esse Período Moderno era uma época de viver por ideais, valorizar os meios para se chegar a determinados fins, embora ambos esses fatores entremeados com diversos outros em um quadro complexo.
     Como dizia o historiador britânico Hobsbawm, o século XX começou em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial e terminou em 1989 com a Queda do Muro de Berlim. Embora muito interessante, não vamos pormenorizar agora esse conceito.
     Indo então para o fim da Segunda Guerra Mundial, a partir de 1950 inicia-se o Período Pós-Moderno (conforme estudo de Lyotard de 1977). Esse período caracteriza-se como uma era de Pragmatismo, Eficiência e Resultados. Ideais tornam-se secundários, os meios para atingir certos fins passam a ser secundários, levando a uma crise ética, embora os traumas da Guerra, e visam-se resultados palpáveis, concretos. A Subjetividade passa a ser cada vez mais substituída pela Objetividade. Há um movimento de contracorrente a isso presente na Contracultura, que tem suas consequências. Todo esse processo “pós-moderno” perdura até o início do século XXI, quando Pragmatismo, Eficiência e Resultados começam a decair.
     A Universidade Pós-Moderna é a que visa mais a Eficiência e os Resultados do que propriamente a formação da pessoa como ser humano, diferentemente da Universidade Moderna.
     Nesse Período Pós-Moderno, ocorreu a divulgação de uma certa “Globalização” como a salvação geral, e a gradual “desumanização” não só da Medicina, mas da sociedade, pois a Medicina só se desumaniza em uma sociedade que também se desumaniza.
     A Medicina, em sua História, teve altos e baixos diversos, no que concerne à “humanização”. Lembremos que este vocábulo aplicado à Medicina surgiu aproximadamente nas últimas três décadas do século XX.
     Surge então um período histórico de transição, ou, como diz Erwin Lazlo, de Macro Shift ou Macro-Transição. No início do século XXI, após o Atentado às Torres Gêmeas de 2001 e após a crise econômica mundial iniciada em 2008, os parâmetros Pragmatismo, Eficiência, Resultados, passaram a perder terreno e têm sido substituídos por outros parâmetros. Esse período de transição também pode ser chamado, por enquanto, de Pós-Pós-Moderno, já que o Pós-Moderno entra em decadência.
     A Medicina Pós-Moderna era aquela que se orientava, e ainda se orienta, por Pragmatismo, Eficiência, Resultados e Objetividade, ou Objetivismo, com desvalorização da Subjetividade ou Subjetivismo. Essa era uma Fast Medicine, ou seja, o mais rápida possível, independente de ser ou não uma situação emergencial. Esse Fast dizia respeito a Pragmatismo, Eficiência, Resultados, Objetividade.
     Agora, no Período Pós-Pós-Moderno, iniciado no século XXI, vemos que Pragmatismo, Eficiência, Resultados, Objetividade respondem cada vez menos às expectativas das pessoas e dos profissionais, exceto nos casos urgentes e emergentes. Procura-se recuperar o espaço da Subjetividade; procura-se uma Eficiência que seja apenas um meio para atingir um fim e não um fim em si; procuram-se os resultados que tenham um interesse comum e não apenas como um desperdício ou uma conquista sem finalidade.
     O Movimento Slow Medicine, ou “Medicina sem Pressa” surge nesse contexto pós-pós-moderno, que busca novos caminhos para a Medicina, inclusive recuperando uma parte dos velhos caminhos que se perderam pelo caminho...
   
    


domingo, 8 de outubro de 2017

Neuro-Narrativa e Neuro-Discurso: resumo da primeira aula. Parte 1


Nesta discussão sobre a interface entre os Estudos Neurológicos e os Estudos sobre Narrativa e Discurso, um primeiro aspecto a ser abordado é a designação que usamos em português para o termo “história”. Há décadas atrás a língua portuguesa tinha estabelecido 2 formas: “história” e “estória”, de modo similar aos termos em inglês “history” e “story”. “História” dizia respeito à narrativa de fatos, acontecimentos, ou ao supostamente real, ou ainda à ciência histórica. Já “estória” dizia respeito, em geral, a uma narrativa como “começo, meio e fim”, muitas vezes como ficção, mas não necessariamente. Estória com fatos reais, com começo, meio e fim, também pode ser mais “estória” do que “história”, embora possa conter fatos históricos.
     Podemos dizer então assim “estória” é uma narrativa com começo, meio e fim, sendo fatos supostamente reais ou não. História é a área de estudo assim designada, ou ainda a história clínica convencional.
     Há décadas, foi determinado que na língua portuguesa (pelo menos do Brasil) não se usaria mais o termo “estória” e apenas “história” para as diversas condições.
     Ao estudamos Narrativa e Discurso, parece-nos que isso é uma perda. Consideramos necessário, mesmo que usando em itálico ou entre aspas, o uso do termo “estória” para as narrativas de começo, meio e fim.
     Toda “estória” é uma narrativa. Nem toda narrativa é “estória”.
     Podemos fazer uma narrativa “histórica” com uma sucessão de dados históricos, a respeito de um assunto específico. Essa narrativa pode ter uma sequência lógica, mas não necessariamente tem “começo, meio e fim” como nas “estórias”.
     Podemos ler um livro sobre “história” que tenha uma descrição “histórica” de supostos eventos. Também podemos ler uma “estória” sobre esses mesmos eventos, mas que seja no modelo comumente chamado de “romanceado”, com começo, meio e fim.
     Conforme Prince (1987), “narrativa” é o recontar de um ou mais eventos reais ou fictícios comunicados por um ou mais narradores a um ou mais ouvintes.
     Dentro da Narrativa, um aspecto principal é a “intriga” ou “trama”: é a linha dos incidentes principais que constituem a estrurua caracterizável pelo arco dramático de Aristóteles ou pela pirâmide de Freytag.
     Em “A Arte Poética”, Aristóteles (384-322 a.C.) delineia o primeiro estudo a respeito de narrativa. Uma frase importante dessa obra é “A tragédia é a imitação de uma ação”. Essa colocação de Aristóteles implica também na arte de interpretação teatral da narrativa. Aristóteles nomeia as partes da narrativa interpretada como seis: fábula, caracteres, elocução, pensamento, espetáculo, canto.
     Já, no século XIX, o alemão Gustav Freitag (1816-1895), em “A técnica do Drama” estabelece no que é chamado de a Pirâmide de Freitag, uma forma de designar o “começo, meio e fim” da narrativa, com as partes: Exposição, incidente incitador, ação em progresso, complicação, clímax, reversão, redução da ação, resolução, desfecho. Dispostos em sequência ascendente e descendente, tem-se o clímax no ponto mais alto desse gráfico.
     Em Narratologia, considera-se ainda que:
Texto –  são as palavras e interrupções gráficas que compõem o texto.
Discurso – o texto conduzido pelo comunicador do texto.
Fábula – situações e eventos em ordem cronológica na narrativa.
Ator – é aquele que muda “o estado do mundo” na narrativa.
Ato – “estado do mundo” modificado pelo ator.
“Acontecimento/ocorrência” – mudança no “estado do mundo” não trazido por ator.
Personagem – ator antropomórfico.
Coerência da intriga/trama – é a percepção de que os eventos principais de uma estória
são causalmente relevantes para o resultado da estória.
Credibilidade da personagem – percepção de que os eventos da estória são
razoavelmente motivados por crenças, desejos e metas dos personagens dos eventos.
     Alguém pode questionar sobre o que tem a ver esses aspectos de narratologia com a atividade médica. Há várias explicações: uma é a recuperação do valor da anamnese; outra é que o paciente tem sua história clínica, mas tem também suas “estórias”, que podem conter fatores associados ao seu quadro, e podem esclarecer diversas situações clínicas. Assim, estórias dos próprios pacientes, por vezes, esclarecem aspectos da história clínica. Além disso, o exercício com narrativas pode melhorar o trabalho do médico, além de poderem melhorar neurologicamente e psicologicamente médico e paciente.