quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Curso "Humanização da Medicina e seus Mitos" - Aula 3 - Parte 1 - O Mito da Mitologia

Curso “Humanização da Medicina e seus Mitos”
Aula 3 – Parte 1 – O Mito da Mitologia

Temos questionado sobre a relação entre o binômio humanização/desumanização na área da Saúde e na Medicina e os Mitos nos diversos sentidos desse termo.
Vamos inicialmente estudar alguns aspectos sobre o “Mito da Mitologia”.

As origens do Mito se perdem no início da humanidade.
Ser humano, cultura e linguagem formam um triângulo inseparável “desde que existe ser humano” sobre a terra. Essa correlação inseparável determinou os limites e as possibilidades, bem como as características do entendimento do homem sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo.
Usemos um termo da linguagem de Eliade e de Kereny para os “primórdios” da humanidade. Esse termo é o adjetivo “primordial”.
Podemos dizer que primordiais eram as “primeiras coisas” que supostamente integraram o ser humano.
Assim podemos falar em uma “Cognição Primordial”.
Cognição diz respeito à capacidade de aprendizado, de conhecer do ser humano. Assim, em alguma etapa do desenvolvimento humano que se perde em milhões de anos atrás, o ser humano passou a ter um padrão diferenciado de cognição que estamos chamando de “cognição primordial”.
Dessa “Cognição Primordial” um elemento fundamental é a capacidade de ter uma “memória individual”.
Supostamente as outras espécies animais têm um certo grau de memória individual. Os eventos benéficos, maléficos ou neutros devem marcar de diferentes formas o sistema nervoso dessas outras espécies, de modo que compõem alguns dos fatores que condicionam o comportamento desses animais.
O ser humano passou a apresentar essa capacidade em um maior grau de complexidade.
A intrigante possibilidade do indivíduo “dividir-se a si mesmo”, de modo que seja capaz de refletir sobre o seu próprio ser, acrescenta uma série de implicações na capacidade de memória individual. Aliás, o verbo “refletir” também se aplica à “imagem refletida no espelho”. Até onde se sabe só o ser humano é capaz de reconhecer-se no espelho. Para que esse reconhecimento ocorra, é necessário um distanciamento, uma divisão interna, que permita ao indivíduo saber que aquele no espelho “é ele mesmo” e “não é ele mesmo”; é uma imagem dele e não de outra pessoa, mas não é exatamente ele e nem outra pessoa. Mas a imagem permite uma “autoidentificação”: um sinal distinto de identidade pessoal.
Alguém pode questionar se há necessidade de adjetivar a memória de individual, pois pode considerar que se a memória situa-se no cérebro, então só pode haver uma memória individual.
Ocorre que o ser humano individual sempre é atravessado pelo “coletivo”, pelo “comunitário” desde os seus primeiros momentos de existência. Isso se entende por aquele triângulo inicial entre ser humano, cultura e linguagem. Há uma série de “marcas de memória” que são culturais, são comuns aos membros de uma comunidade humana.
Alguém pode falar aí em um “engrama coletivo”. Podemos concordar, mas sem nos apressarmos a reduzir essa categoria apenas à dimensão genética.
Assim, memória individual e memória coletiva primordiais foram importantes para o acúmulo de conhecimento e aprendizado do ser humano.
Outro elemento dessa cognição primordial é a “capacidade de comparação”. Essa é uma espécie de “capacidade matemática pré-histórica”. Uma capacidade neurológica ou neuropsíquica de “mensuração”. Se as outras espécies animais tinham uma capacidade inata de “mensurar” a distância da presa, ou da ameaça, por exemplo, no ser humano essa capacidade se traduz em uma interpretação mental e instrumental de mensuração.
Assim, vemos nessa cognição primordial a noção de grandeza, a percepção de opostos, a noção de espaço e de tempo, a noção de linearidade e a noção de ciclicidade (mais do que de circularidade), bem como as habilidades motoras concomitantes a esses outros processos.
Assim podemos falar em noções “primordiais”. Noções essas que dizem respeito a: defesa e  ataque; ameaça e agressão; dor e sofrimento; poder e impotência; vida e morte. Nesse contexto noções mais complexas dizem respeito a “culpa” e “responsabilidade”.
A noção de culpa supostamente estaria ligada a alguma forma de “crime primordial” que diria respeito à consciência da necessária morte de animais para sustentar a tribo/comunidade, ou ainda a alguma forma de sacrifício ou morte de outros seres humanos.
A responsabilidade estaria ligada à consciência de “ter que cuidar” da família ou comunidade, em um patamar além da noção instintiva dos animais.
Esses processos se deram no nível individual e no coletivo.

Linguagem e Noções primordiais
Assim também esses diversos processos interligaram-se à linguagem.
A linguagem verbal e não verbal prestou-se ao entendimento de si, dos outros, do mundo
e dos vínculos entre esses elementos.
Na linguagem, que é sempre simbólica, inseriram-se as “imagens míticas”.
Concomitantemente “explicativas”, “condensadoras” e “atenuantes” de uma carga emocional sobre “vínculos vivenciados”. 

Assim, até agora, ao falar-se em “cognição primordial” parece ter-se falado mais sobre a capacidade racional, ou mesmo intelectual do ser humano.
Ao falarmos de “imagens míticas” inseridas na linguagem primordial estamos inserindo também a noção de “emoção primordial”. Todo o tempo, os seres humanos tiveram que aprender também a respeito de suas emoções, e aqui também individuais e coletivas.
Desse modo, os vínculos vivenciados emocionalmente puderam adquirir um caráter “sagrado”, ou seja, transpuseram os limites do cotidiano (tempo, espaço, etc.), “consagrando” esses vínculos, em alguma forma de memória coletiva.

Mito da Mitologia
A palavra Mito vem de mythoi , que significa  “narrativa”, ou ainda “história” (ou ainda a “estória” de outras línguas ou que já teve seu lugar no português).
Conforme o estudioso de mitologia Carl Kerényi (1897-1973):
O Mito era uma “narrativa que suscitava ecos no interior dos interlocutores, despertando a consciência de que essa narrativa dizia respeito pessoalmente ao narrador e ao espectador”.
Ainda conforme Kerényi, o mito grego sempre figura como uma coisa “perceptível”, “do cotidiano”, mas sua simbologia “vai além do significado primeiro” e desdobra-se em várias imagens na mente.
Conforme Mircea Eliade (1906-1986) o mito é realidade cultural complexa, que conta uma história dos tempos primordiais, história essa que tem um caráter sagrado; que sempre se refere a “realidades”.
Segundo Joseph Campbell (1904-1987) o mito, ou ainda a Mitologia, tem 4 funções:
1- Mística ou metafísica, dizendo respeito à uma forma de reconciliação individual e coletiva.
2- Cosmológica – correspondendo à possibilidade de inserção no Todo.
3- Sociológica –  função de adequação à ordem social.
4-     Psicológica – o mito molda a psique do indivíduo.

Deuses e heróis gregos
Falando mais particularmente das entidades míticas gregas, podemos inicialmente assinalar algumas características dos deuses e dos heróis gregos.
Para os gregos os deuses são de um tempo antes dos tempos, um “tempo primordial” sem a mesma contagem de tempo dos humanos.
Já os heróis são de um “tempo intermediário” entre o tempo primordial e o tempo histórico.
Esses heróis, mesmo que tenham sido inicialmente pessoas reais, posteriormente suas lendas os “retiram da história” e os aproximam dos deuses.
De certa forma a “glória do divino cai sobre o herói” e se combina com a “sombra da mortalidade”.
Os heróis gregos têm importante papel na memória coletiva.
O culto aos heróis era precedido pelo culto à deusa Mnemósine, deusa da Memória.
Assim os heróis dão sentido e motivação de vida a seu povo.
Por outro lado, os heróis gregos não têm apenas o sentido de “vitória”, como muitos “heróis modernos”, mas também estão ligados à importante noção de sacrifício da cultura grega.
Conforme Carl Gustav Jung (1875-1961)  a “figura arquetípica” do herói tem importante função no desenvolvimento psíquico.
O termo “arquétipo” foi inicialmente proposto por Platão. Archetypon (ou seja, de tipo – forma e de arché – antigo) dizia respeito ao “modelo original” das coisas, modelo esse perfeito e presente no Mundo das Ideias (Topos Noetos).
Jung retoma essa conceituação e a utiliza no sentido de “imagens primordiais universais” presentes no inconsciente coletivo.

Mito – Culto - ritual
O culto aos deuses e heróis é mais do que apenas uma “imitação do mito”.
O culto busca “reviver” o mito.
A linguagem do culto era própria de sua cultura e, portanto, distante de nosso acesso, o que pode dificultar seu entendimento pleno.
Os Rituais diziam respeito a rituais de antigos “eventos sagrados”, ou ainda a Ritos de Passagem em diversas etapas da vida individual e coletiva (por exemplo, o rito de passagem da puberdade à idade adulta).
Eliade vê resquícios de ritualidade na Modernidade que têm apenas uma parcela de significado e carga emocional-racional dos antigos mitos.

Voltando dos mitos para a medicina, vamos questionar se haveria uma “Desumanização antiga?” – ou seria um Mito antigo da desumanização da medicina?
Assim citemos Archagathos de Esparta, que no ano 219 a. C. teria sido o primeiro médico grego em Roma, saudado pelo povo e pelo Senado como “curador de feridas”.
Por problemas posteriores ele depois foi repudiado e chamado de “açougueiro”.
Tal afirmação não ressoa estranha aos nossos dias. Teria sido esse um episódio antigo de “desumanização em medicina” ou teria sido uma injustiça contra Archagathos?
Uma outra menção vem do romano Plínio, o Velho (séc. I d.C.):
Ele particularmente não gostava dos médicos gregos e dizia:
“eles aprendem com nossos corpos, fazem experimentos até a morte, e o médico é o único que não é punido por assassinato”.
Essa também é uma frase que não ressoa estranha a nós. Por outro lado, devemos lembrar que em Roma a Medicina era exercida por estrangeiros ou por escravos. Os estudiosos latinos que escreveram sobre Medicina eram estudiosos em geral, não apenas de medicina e nem foram iniciados em escolas médicas, como ocorria com os gregos.





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