sábado, 4 de junho de 2011

Parte 3 - Multi, Inter, Transdisciplinaridade

Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

Conforme já comentamos, existe certa tendência natural no ser humano em fazer algum tipo de subdivisão em suas atividades, acompanhando sua capacidade natural de atenção focada, e de ter essa atenção localizada no espaço e no tempo, distribuída de forma linear, ou não–linear. Desse modo, pode-se dizer que a multidisciplinaridade segue essa tendência. Isso não deve fazer da multidisciplinaridade a única nem a melhor forma de convivência de disciplinas. Há instâncias que são próprias da interdisciplinaridade e há “outras instâncias” em diferentes níveis de abordagem epistemológica, que correspondem à transdisciplinaridade.
Desse modo, achamos que cada nível de disciplinaridade tem seu contexto apropriado, de modo que não deve haver o objetivo de “acabar com a multidisciplinaridade” em benefício da inter ou da transdisciplinaridade. Ocorre que a multidisciplinaridade mais comumente está associada a uma maneira segmentada de conhecimento que tende a isolar cada área em seu próprio nicho com pouco contato com outras áreas. Em se tratando de áreas da saúde isso pode tornar-se mais dramático, na medida em que pode indicar uma segmentação do próprio ser humano. Nesse sentido que achamos interessante estimular o debate inter e transdisciplinar sem precisar para isso ter-se uma atitude contrária à abordagem multidisciplinar.

Voltando-se ao estabelecimento das disciplinas, observamos que  nos séculos XVIII e XIX ocorreu a gradual “consolidação” do que ficou assinalado como Ciência Moderna. Nesse processo ocorreu a subdivisão do conhecimento em áreas específicas a partir do aprimoramento de novos métodos científicos, novas técnicas e incorporação de novos vocabulários próprios de cada campo científico.
Auguste Comte (1798-1857) criador do Positivismo reforçou a subdivisão das ciências, e do conhecimento, em especialidades, e, paradoxalmente, propunha um certo tipo de unidade do conhecimento. Mas, também o não tão famoso William Whewell (1794-1866) também teve papel importante na configuração da conceituação de Ciência, de modo que criou o termo “cientista” entre 1833 e 1840, referindo-se ao profissional da Ciência.

Disciplinaridades

O discurso a respeito de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade ganhou corpo principalmente a partir de 1968, embora haja dados de que a palavra interdisciplinaridade tenha surgido nos anos 1920. Desse modo, um novo olhar a respeito das áreas de conhecimento acompanhou o eclodir de movimentos estudantis internacionalmente que clamavam por mudanças no ensino e na abordagem do Conhecimento.
Assim, questões referentes às “disciplinaridades” aparecem praticamente a partir da segunda metade do século XX. Quando nos reportamos a estudiosos de antes desse período e os consideramos “multi” ou “inter” ou “transdisciplinares”, essas considerações partem de nós, partem deste nosso tempo e não necessariamente os estudiosos enfocados viam as áreas do Conhecimento da mesma maneira que nós agora vemos.
Como um esclarecimento do uso de certos termos, devemos lembrar que palavras com o prefixo “multi”, como multiprofissional ou multicultural, nem sempre equivalem a multidisciplinar. Pode haver concomitância de cada uma dessas palavras com quaisquer das formas de convivência entre as disciplinas, ou seja, um trabalho multiprofisional pode ser interdisciplinar.

Como já dissemos, o termo atual “disciplina” pode corresponder a uma Área do Conhecimento ou a um Setor ou seção universitária ou departamento da Universidade.
Uma disciplina, seja em qualquer desses sentidos, não se estabelece apenas por critérios científicos, mas sempre tem uma vertente política (no sentido amplo do termo) em sua fundação, conforme Joe Moran.
Portanto, a configuração da disciplina (em seus vários sentidos) acompanha seu momento histórico, com as variáveis políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.
Por outro lado, “o mercado” pode demandar novos especialistas, ou seja, pode promover o aparecimento de novas especialidades e subespecialidades, ou ainda reativando antigas especialidades.
Podemos aplicar o raciocínio da citada influência mútua entre Conhecimento e as diversas vertentes sociais para o debate sobre as disciplinas. O olhar surgido na segunda metade do século XX voltado para a questão da disposição entre as disciplinas veio acompanhado com mudanças nos grupos voltados ao Conhecimento.
Após a Segunda Guerra Mundial ocorreu a massificação das Universidades e a passagem administrativa de cátedras para disciplinas (variando de país para país), passando a ser organizadas em departamentos (sob formatos variados). No Brasil certamente esse foi um processo ocorrido na administração universitária.
A antiga disciplina tinha o nome de Cátedra e correspondia ao “serviço do Professor Catedrático”, ou seja, tinha um forte traço pessoal do Chefe dessa área, sob o forte nome próprio de tal figura. Lembremos que a palavra cátedra provém do termo “catedra” como sendo a “cadeira” onde se sentava o bispo das catedrais. Nas catedrais havia escolas que foram precursoras das universidades. Assim o “catedrático” era aquele que comandava o ensino no local.
Com o processo de massificação das universidades, com o anseio pela democracia, dos mais diversos povos, após a Segunda Guerra Mundial, entra no ambiente universitário um espírito que busca modificar certa posições vitalícias de seu quadro de professores e experts, de modo que as áreas do Conhecimento deixam de estar vinculadas ao nome específico de um catedrático, para vincular-se à disciplina, ou especialidade propriamente dita.
Tais mudanças têm velocidade diferente nos diversos países, em virtude de condições próprias de cada nação. Enquanto nos países da Europa, os movimentos estudantis tinham forte enfoque também voltado às mudanças no ensino, em países sob regime ditatorial, como o Brasil, esses movimentos dirigiam-se mais fortemente a combater o regime opressor, havendo assim uma menor preocupação com as questões acadêmicas.
Então, o debate “multi, inter, trans” tem um determinado timing e processo com nuances diferentes nos diversos países. No Brasil, embora iniciado esse debate na área de pedagogia há um bom tempo, na área científica ainda há muita confusão sobre o sentido e aplicação desses termos.


Multidisciplinaridade

Também chamada de Pluridisciplinaridade (o prefixo “pluri” é latino, diferentemente do grego “multi”, de modo que “pluri” de adequaria mais ao latino “disciplina”).
Corresponde à coexistência de áreas do Conhecimento com algum tipo de proximidade, mas com diálogo superficial entre elas, com limitada troca de informações. Pode eventualmente haver certa harmonia entre as diferentes áreas, quando dispostas em uma organização burocrática do ambiente de ensino. Há alguns elementos comuns, mas cada disciplina fica com sua linguagem e seus próprios métodos.
Como já dissemos, sob certo ponto de vista pode-se dizer que essa disposição multidisciplinar das áreas do Conhecimento já está presente desde Aristóteles, não havendo novidade em se dizer que “agora somos multidisciplinares”. Eventualmente, quando uma área única, isolada, estiver realmente trabalhando de forma “unidisciplinar”, pode ser talvez o caso de passar a um nível “multidisciplinar” quando ao menos passar a ter algum grau de convivência com outras áreas.
O termo “unidisciplinar” é mais frequentemente usado nas situações de linhas de pensamento “totalizantes” que consideram apenas um único padrão de discurso como necessário e suficiente.

Interdisciplinaridade
Alguns consideram a interdisciplinaridade tão antiga quanto certos pensadores tidos como  “interdisciplinares” tais como: Platão, Aristóteles, Rabelais, Kant, Hegel, etc.
Para outros estudiosos a interdisciplinaridade é um fenômeno do século XX, radicado em reformas educacionais, em certas linhas de pesquisa e em movimentos com finalidade de transpor os limites disciplinares.
As raízes da Interdisciplinaridade podem estar em ideias que ressoam no discurso moderno: ideia de Ciência Unificada, ideia de um Conhecimento Geral; noção de síntese; integração do Conhecimento. Tentativas voltadas para esses objetivos, no século XX, por vezes ficaram  longe do propósito interdisciplinar e aproximaram-se de alguma forma de reducionismo.
Podemos fazer um rápido retrospecto histórico a respeito de tais processos.
Platão teria sido o primeiro a propor a Filosofia como centro de um Conhecimento Unificado e considerou o filósofo como o único capaz de sintetizar o Conhecimento.
Para ele, Dialética e Matemática seriam áreas proeminentes em relação às outras, além da Geometria.
Aristóteles caminhou em direção a uma subdivisão mais clara entre as áreas.
Para ele a Filosofia, e mais especificamente a Lógica, tinha proeminência sobre outras áreas, com um papel central e promovendo certa unidade entre elas.
Em Roma, embora houvesse uma ênfase maior na disciplina Retórica, o autor Quintiliano, por exemplo, propunha uma ampliação do espectro e da ênfase dos estudos.
O romano Cassiodoro, no início da Idade Média, fez uma escola, o Vivarium, e quase conseguiu criar uma primeira universidade no século VI.
As escolas medievais herdaram o Trivium e o Quadrivium de Roma: Gramática, Retórica e Dialética no Trivium; Música, Geometria, Aritmética e Astronomia no Quadrivium. Esses estudos eram chamados de Artes Liberais. Esse padrão de subdivisão segue parcialmente a linha aristotélica. Seu nome de “Artes” provém da tradução latina do grego “techné”, palavra abrangente usada tanto para “arte” no sentido de produção estética, quanto no sentido de habilidade.
As primeiras Universidades surgiram na Idade Média, em geral, das escolas das catedrais. Desde deu início guardaram certas características de autonomia em relação ao poder vigente, de modo que, embora sofrendo controles, sempre ter sido foco de origem de inovações e de movimentos questionadores do padrão corrente de Conhecimento. Assim, a Universidade era universitas scientiarum, ou seja,comunidade de disciplinas do Conhecimento”, e ainda, universitas magistrorum et scholarium, ou seja, comunidade de professores e estudantes.
Na Baixa Idade Média, “disciplina” como área do Conhecimento passou a ser aplicada de forma mais proeminente a 3 áreas: a Teologia e Artes em Paris; a Direito em Bologna; a Medicina em Salerno. Vários séculos mais tarde Kant, no “Conflito das Faculdades”, vai queixar-se do favoritismo do poder vigente dirigido a essas três áreas, em detrimento do campo então chamado da Filosofia (que englobava também o que hoje chamamos de Ciências Humanas).
Diversos estudiosos desde o período do Renascimento, indo até o Iluminismo e após este, expressaram alguma preocupação com a questão do Conhecimento fragmentado ou uinficado, tais como:   Bacon, Descartes, os enciclopedistas franceses, Kant, Hegel, Comte e outros. No entanto, tais considerações não eram exatamente equivalentes ao atual enfoque interdisciplinar.
No século XIX gradualmente consolida-se a moderna disciplinaridade, acompanhando a Revolução Industrial e a urbanização da sociedade. Assim, ocorrem avanços tecnológicos e o Conhecimento torna-se mais centrado na Ciência decorrente do aprimoramento e subdivisão das chamadas Ciências Naturais. Entre 1833 e 1840 William Whelwell criou o termo “cientista” para o praticante da Ciência, de modo que, de certa forma, coloca esse indivíduo como um profissional dessa área em primeiro plano, em relação às suas outras habilidades. Concomitantemente a tudo isso, consolidam-se também as nações modernas, de modo que o traço do nacionalismo também vai impregnar o ambiente do Conhecimento.
No início do século XIX, com a fundação da Universidade de Berlim por Wilhelm von Humbolt, estabeleceu-se um certo padrão de ensino universitário que foi seguido por diversas universidades no mundo. Tal padrão seguia uma noção de Educação Universal. Com o transcorrer dos século XIX e XX, tal padrão vai se confrontar com a gradual multiplicação de disciplinas e especialidades, culminando com variados conflitos sobre o modelo a ser seguido no ensino em geral, no fim do século XX e início do século XXI.

Conforme J. Moran, o termo “interdisciplinaridade” surgiu em meados da década de 1920, principalmente em torno de questões sobre educação universitária na Inglaterra no ambiente após a Primeira Guerra Mundial.
A Primeira Guerra Mundial foi um importante divisor de águas na História, de modo que, no entender do historiador inglês Eric Hobsbawm é a partir daí que se inicia o século XX. Esse evento condicionou a modificação de diversas variantes sociais e culturais, bem como no Conhecimento e na Ciência. Não necessariamente como consequência direta da guerra em si, mas muito mais pelas modificações sociais e culturais decorrentes dela.
Assim, conforme Moran, após a Guerra Estudos da Língua Inglesa passaram a ter maior valorização na Universidade e passaram a ter uma função de elo interdisciplinar entre os diversos campos do Conhecimento. Moran cita o estudioso Leavis, como um dos principais estimuladores desse movimento. Esse processo estava ligado a uma nova disposição entre as nações no pós-guerra, voltando-se para suas próprias origens e características culturais.
É interessante observarmos que essa questão surgiu ligada a uma área de Estudos da Linguagem. Como sempre acentuamos, a questão “multi, inter, trans” está sempre precedida por fatores relativos à Linguagem.
Nas décadas de 1920 e 1930 houve uma busca pela Ciência Unificada, que para alguns é citada como interdisciplinar, mas que também pode ser vista como tendo um objetivo “unidisciplinar”.
Em 1924 estabeleceu-se o “Círculo de Viena”, que propunha uma terminologia e regras comuns para a Ciência.
Nos anos 1930 ocorreu a elaboração da International Encyclopedia of Unified Science por Otto Neurath, Rodolf Carnap e Charles Morris. Havia uma proposta de “Integração” entre as diferentes áreas científicas.
Depois da Segunda Guerra Mundial ocorreu a já referida multiplicação das universidades e sua massificação. Em certas universidades do Reino Unido os “Estudos Culturais” passaram a substituir a função do Estudo da Língua Inglesa como uma área interdisciplinar no sentido de intermediar as diversas áreas do Conhecimento, conforme Moran.

Interdisciplinaridade, no sentido amplo, significa uma integração entre disciplinas.
Assim, há várias interdisciplinaridades, já que pode haver várias formas de integração.
Por outro lado, ainda conforme Moran, não há interdisciplinaridade sem disciplinas. Portanto, a eventual proposta de eliminação das disciplinas pode conduzir a alguma outra coisa que ainda não é a interdisciplinaridade.
Conforme Pombo, não há apenas um único conceito de interdisciplinaridade. Ela pode ter as seguintes adjetivações: auxiliar, complementar, compósita, de engrenagem, estrutural, heterogênea, linear, restritiva, unificadora, etc., etc.
Conforme Klein,  podem ser várias as formas de trabalho interdisciplinar:
- intrapessoal – uma mesma pessoa utilizando várias linguagens e métodos.
- Interpessoal – entre duas ou mais pessoas.
- Interdepartamental – entre departamentos, disciplinas, etc.
- Conexões comunitárias – aplicação de conceitos e práticas disciplinares à comunidade.

Conforme Moran eventualmente confunde-se interdisciplinaridade com “unidisciplinaridade”. Ele refere-se ao que chama de “Teorias de tudo”. Tais teorias podem levar a um discurso hegemônico sobre o Conhecimento e, portanto, a um reducionismo no discurso científico. Assim, têm-se, por exemplo, alguns neodarwinistas bestsellers tais como Richard Dawkins para quem “tudo é gene”, até mesmo a cultura.
Ainda de acordo com Moran o campo da Neurociência é visto como uma área interdisciplinar da ciência que pode interligar “estudos culturais e biologia”.
       
Transdisciplinaridade

A palavra “transdisciplinaridade” foi lançada por Jean Piaget em 1970, dando a entender que havia necessidade de se dar “um passo além” da interdisciplinaridade.
Na transdisciplinaridade ele sugere que não haja barreiras entre as disciplinas.
Concomitantemente à proposta de Piaget, ganham espaço outras idéias que vão em direção similar como o Pensamento Complexo e os Estudos Transculturais (crosscultural studies).  
Em 1994 ocorre o “Manifesto da Transdisciplinaridade” com Edgar Morin, Basarab Nicolescu e Lima de Freitas, consolidando determinada linguagem e elementos em torno dessa conceituação.
A transdisciplinaridade tem três pilares:
1 –Níveis de Realidade.
Diz respeito a não reduzir-se o real a apenas um único nível de realidade seja ela correspondente à Física, ou à Química, ou à Biologia, ou a algum sub-nível biológico e assim por diante.
2 – Complexidade.
A Complexidade também vai no sentido contrário ao reducionismo. Como diz Edgar Morin, complexidade é diferente de complicação. Sob a visão complexa mantêm-se abertas as diversas possibilidades de entendimento, de formulação de problemas e busca de respostas. Busca-se jogar luz sobre as zonas obscuras ou excluídas do Conhecimento.
3 – Terceiro incluído.
O “terceiro incluído” vai além dos pares de opostos. Admite paradoxos. Vai além da Lógica convencional, admitindo níveis de Conhecimento que podem englobar noções que são conflituosas em outros níveis.
A Transdisciplinaridade também inclui aspectos culturais. Este pode ser talvez considerado como um quarto pilar.

4 comentários:

  1. Terá aula amanha, dia 30/06/2001?

    Abraços!

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  2. Thiago:
    Sim! Haverá aula amanhã 30 de junho.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. a resposta que o professor pediu para responder para dia 30/06 precisa ter um numero minimo ou maximo de linhas?
    Obrigado

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