domingo, 22 de setembro de 2013

Aula 3 do Curso "Abordagens do Conhecimento": Multi, Inter, Transdisciplinaridade - parte 1.

Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

Na pré-história, no Período Paleolítico, já havia uma “divisão de trabalho”, para usar uma conceituação de Durkheim. Essa divisão era de padrão “caçador-coletor”, de modo que, o homem desempenhava a função de caçador e a mulher de coletora de frutos e ervas. Esse talvez seja o formato mais antigo de uma espécie de “especialidade” laboral entre os seres humanos.
Há que se lembrar também que essa, assim dita, “divisão de trabalho”, acompanhava uma tendência natural do ser humano de “focar”, “concentrar-se” em certas tarefas diárias. Deve ser frisado que o ato de “focar a atenção” se faz presente também em outras espécies animais, em suas atividades de ataque, defesa, etc. Assim, como uma capacidade herdada pela evolução, os seres humanos têm a necessidade de que a função básica de “atenção” esteja em boas condições para que as “funções cognitivas” possam estar ativas e em condições de promoverem o aprendizado e, desse modo, também serem aprimoradas.
Expusemos esse preâmbulo para dar a entender que é, de certa forma, uma tendência natural ao ser humano a busca de “recortar uma parte do todo”, de focar sua atenção em uma determinada subdivisão das coisas com as quais trabalha, para que possa efetivar uma conclusão de suas reflexões, ou respostas a suas perguntas, ou solução a seus problemas, ou ainda um resultado prático de suas atividades produtivas.
Essas argumentações dizem respeito a entender-se que a “multidisciplinaridade” acompanha uma tendência natural do ser humano de dividir suas tarefas com o objetivo de otimizá-las.
O discurso sobre “multi, inter e transdisciplinaridade” é próprio da segunda metade do século XX. Quando olhamos para um período anterior a este e usamos tais termos, nós estamos fazendo uma determinada leitura do passado com a nossa própria linguagem.
Ao nos referirmos a “disciplina” aqui, estamos falando de uma área específica do Conhecimento e não necessariamente de uma “Disciplina” com “D” maiúsculo escrita sobre a porta de certas divisões ou departamentos universitários. Eventualmente pode corresponder às duas coisas concomitantemente.
Multidisciplinaridade: é o termo usado para se referir a várias disciplinas que coexistem próximas, trabalham lado a lado, mas ficam cada uma com sua linguagem e seus métodos. A troca de informações entre as áreas é limitada. De certa forma, esse modelo está vigente desde Aristóteles, com algumas variações.
Interdisciplinaridade: neste caso pode existir uma linguagem comum entre as disciplinas, ou ainda o entendimento mútuo das linguagens, e existe ainda alguma permuta de métodos, ou a adoção dos mesmos métodos.
Transdisciplinaridade: trabalha mais com o que podemos chamar de “metalinguagem” e “metamétodos”. Inclui fatores culturais em sua abordagem das disciplinas.
Alguns autores que estudaram e estudam essas questões são:
Jean Piaget – esteve entre os que primeiro procuraram sistematizar estudos a esse respeito nos anos 1960-1970. Em 1970 lançou o termo “transdisciplinaridade”.
Julie Thompson Klein – publicou diversos livros sobre disciplinaridades, principalmente sobre o termo “interdisciplinaridade”.
Joe Moran – fez um estudo sobre interdisciplinaridade onde aponta a origem desse termo nos anos 1920.
Edgar Morin – considerado como um dos principais autores sobre Transdisciplinaridade e sobre Pensamento Complexo.
Basarab Nicolaescu – juntamente com Morin assinou o Manifesto da Transdisciplinaridade em 1994.
Vamos nos deter um pouco sobre a palavra “disciplina”.
Disciplina vem do latim discipulus que é um termo equivalente a “aprendiz”.
Outras palavras semelhantes são:
- discereaprender
- doscereensinar
- ducare - conduzir
- (ex-ducare) – (conduzir para fora) educar
ducere – conduzir pelo exemplo
Vemos assim que a palavra disciplina está mais ligada ao indivíduo que aprende do que ao indivíduo que ensina. Também talvez a função do mestre não seja só educar (ex-ducere), mas também “eduzir” (ex-ducere – conduzir pelo exemplo).
Disciplina também é uma palavra que se refere ao estabelecimento de limites, indicando o que se deve e o que não se deve aprender (talvez mais do que o que se deve ou não ensinar).
Por muitos séculos, o sentido de área do conhecimento foi preenchido pela palavra Cathedra, ou seja “Cadeira”, referindo-se mais à figura de comando das escolas das catedrais, que, por sua vez, também tinham esse nome em relação à mesma cadeira da autoridade eclesiástica que comandava essas igrejas; daí veio o termo “professor catedrático. Nesse sentido, a cátedra diz respeito à atividade de doscere (ensinar) ou de ducare (conduzir), ou das duas coisas...
Várias disciplinas foram criadas a partir de doutrinas de pensamento. O termo “doutrina” tem correlação com a palavra “doutor” e provém das universidades do período medieval, quando haviam defesas de “teses”, a partir de hipóteses formuladas. Aqueles que tinham suas teses aprovadas tornavam-se doutores e daí, eventualmente elaboravam doutrinas de conhecimento.
A proximidade de certas doutrinas deu origem a disciplinas também próximas que se organizaram, em geral em torno de temas comuns entre elas. Essa proximidade pode ser dentro de uma estrutura multidisciplinar ou interdisciplinar.
As doutrinas das disciplinas têm suas teorias e práticas.
A palavra grega theoria significava inicialmente, no tempo de Platão, “observação passiva dos ritos mistéricos”, como, por exemplo, dos Mistérios de Elêusis, uma variante das crenças dos antigos gregos, de celebração reservada, aberta a poucas pessoas. Com o passar do tempo, “teoria” assumiu o sentido de Conhecimento não-prático. Mas, como sugere Fourez, não há teoria sem prática e nem prática sem teoria. No entanto, teoria e prática assumiram certo sentido de antônimos.
A palavra grega techné tinha o sentido de “arte”. Sentido esse bastante amplo, abarcando não apenas o que se considera hoje como arte, de modo que incluía também a noção de “habilidade”. Aos poucos techné transformou-se em “técnica”, no sentido de regras relativas à produção de materiais diversos, afastando-se do sentido amplo de “arte”.
Cada doutrina de Conhecimento tem seus postulados, axiomas, paradigmas. Os postulados e axiomas são princípios primeiros sobre os quais sem embasa toda a disciplina; eles não necessariamente foram submetidos a métodos científicos de análise, mas constituem elementos fundamentais sobre os quais a linguagem da doutrina se estabelece. A palavra “paradigma” significa “modelo” em grego e se refere aos modelos vigentes em determinados período sobre os quais se constroi uma doutrina e uma disciplina. Eventualmente esses axiomas, postulados, paradigmas assumem um caráter de “dogma”, como por exemplo no assim chamado “dogma central da Biologia” referente ao modelo de produção de proteínas a partir de DNA-RNA. Embora a palavra “dogma” seja habitualmente asociada a religião, neste caso o seu uso traz à tona certo caráter de “crença” que pode acompanhar o Conhecimento ou a Ciência.   




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