quarta-feira, 5 de junho de 2013

Noções de Filosofia da Ciência

Primeira Aula do Curso "Filosofia das Neurociências e Neurofilosofia".
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves

A palavra Ciência
A palavra Ciência começou a adquirir seu significado atual quando os estudos passaram a ser publicados em vernáculo, substituindo aos poucos o latim, nos séculos XVII – XVIII.
(antes disso, Scientia era 'Conhecimento' em latim)
A palavra latina Scientia adaptou-se às várias línguas, restringindo seu sentido ao Conhecimento específico e metódico da Ciência como passou a ser entendida a partir de certa fase da Idade Moderna.

Línguas vernáculas em Ciência:
Ambroise Paré (1510-1590), cirurgião-barbeiro, foi um ‘precursor’ dos escritos científicos em vernáculo, ao escrever livro médico em francês, porque não sabia Latim. Paré era cirurgião do rei da França. Recebeu críticas dos médicos de então, que necessariamente usavam o latim na universidade. Nessa época os médicos só podiam escrever em Latim (era a língua do Conhecimento).

As Sociedades Científicas:
Houve academias de estudiosos na Itália que precederam as sociedades que são citadas a seguir. Mas essas academias tiveram duração limitada.
1660 – fundação da Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge
   Logo após a Restauração do Rei Charles II é lançada a ideia de instalar um “Império do Conhecimento”.
1666 – fundação da Académie de Sciences na França. Fundada pelo Rei Luís XIV sob orientação de Jean-Baptiste Colbert.

Nesse período, outras academias ligadas a áreas de Conhecimento surgiram na França:

l’Académie française - 1635

l’Académie des inscriptions et belles-lettres - 1663

l’Académie des sciences - 1666

l’Académie des beaux-arts – 1816
Esta reuniu l’Académie de peinture et de sculpture de 1648 e l’Académie de musique de 1669 e l’Académie d’architecture de 1671.

l’Académie des sciences morales et politiques - 1795
Suprimida em 1803 e restabelecida em 1832.

Uso atual da palavra Ciência:
A palavra Ciência (sentido restrito) tem sido mais frequentemente usada para se referir às Hard Sciences (Física, Química e similares) ou às Ciências Biológicas: são áreas que usam método laboratorial de pesquisa, ou avaliação estatística.
Além disso, a aplicação da Ciência acompanha certos critérios de rigor que provêm de estudos científicos. Em sentido mais amplo, a palavra Ciência também é usada para formas de Conhecimento que usam diversos métodos diferentes do laboratorial.

Ciência Moderna:
A palavra Ciência remete-se ao que se atualiza, se aprimora, à ideia de “MODERNO”.
(latim e grego:  ‘modo’ – ‘recente’)
Por vezes, falar em Ciência Moderna pode até parecer redundante.
Assim, algo “antigo” ou “desatualizado” habitualmente é considerado como "fora do contexto científico".

Antigo versus Moderno:
“Moderno” assume caráter de BEM, de MELHOR, de EFICIENTE.
“Antigo” assume caráter de MAL, de PIOR, de SUPERADO.
Assim, CIÊNCIA “só pode ser moderna” (!?).
Ciência seria o único arauto do “verdadeiro” (!?).
A oposição Antigo/Moderno não diz respeito a um processo apenas linear e cumulativo, mas a um fenômeno CÍCLICO na História.
A equiparação de Antigo a TRADICIONAL ou Conservador e de Moderno a NOVO ou Recente nem sempre faz sentido, dependendo do processo em questão. Frequentemente o adjetivo "novo" é usado para lançar alguma proposta tida como "conservadora" ou mesmo "regressiva".

Exemplos de paradoxos antigo-moderno:
A assim chamada “Revolução” de 1930 no Brasil na verdade foi um golpe militar.
A então chamada República “Velha” correspondia a uma federação descentralizada (embora com muitos problemas no quesito 'democracia').
A então chamada República “Nova” na verdade passava a uma grande centralização (ditadura).
O então chamado Estado Novo (1937) foi uma ditadura oficializada.
Além disso, houve na República “Velha”:
- Semana de Arte MODERNA
- Hospital Psiquiátrico do Juquery – era uma instituição bem qualificada até então. Mas, entre 1938 e 1939, no Estado Novo, sua população duplicou de 1840 internos para 3325 doentes.

O termo "Moderno":
No sentido em que foi consagrado, o termo 'moderno' parece ter sido primeiramente expresso e registrado no Ocidente pelo sábio romano Cassiodoro no século VI.

Entre outras coisas ele criou o Vivarium que era então uma organização de ensino, algo acadêmica no estilo de quase uma Universidade.

Cassiodoro ausentou-se por muitos anos de Roma. Ao voltar admirou-se pelo fato de que ninguém mais entendia ou falava a língua grega. Ele disse então estar vivendo em Tempus Modernus, dando a entender uma percepção de "mudança", de certa forma de "novidade". Não necessariamente ele queria dizer que isso era "bom", mas implicava certa perplexidade.
                                       
Walafredo Strabo (séc.IX) citou a época de Carlos Magno (séc VIII-IX) como Saeculum Modernum, referindo-se às inovações trazidas pelo regime desse monarca.
A partir de 1170 começa certo conflito entre antigos e modernos em literatura e nos estudos, surgindo o termo modernitas, que aguardará séculos até surgir o termo algo equivalente "modernidade" (sec. XIX).
(para alguns escritores medievais eles estavam  vivendo em modernitas!)
Vê-se assim, que na própria Idade Média, algo de "moderno" estava presente nos ambientes de estudo, contrariando o estigma que carrega a ideia que se faz dessa época.

Nos Sécs. XIII e XIV aumenta o uso de "moderno" como “o mais recente” até que:
Séc XIV – surge a divisão tripartida da História, com Petrarca e Leonardo Bruni:
Antiguidade – Idade obscura – “tempos recentes”;
(lembramos que nesses anos 1300 a Idade Média como a conceituamos ainda não tinha acabado...)
Nesse caso de Petrarca e Bruni o “moderno” é um retorno ao Antigo, quando nos "tempos recentes" buscam reavivar a Antiguidade.
A partir de Cristoph Cellarius(1634-1707) e outros que se seguirão vai se configurar a Idade Moderna como o período a partir de meados do século XV.

Século XVII – “Revolução” Científica:
 - Francis Bacon (1561-1626) – Empirismo, indução.
Indução: método do particular para o geral.
 - Galileu Galilei (1564-1642) – Método de medidas e experimentação.
 - René Descartes (1596-1650)- Racionalismo, dedução.
Dedução: do geral para o particular.

Método classificatório na Ciência:
Lineu (1707-1778) – Systema naturae – 1735-1759: classificação dos seres vivos.

A Ciência antes da Ciência Moderna:
Início da Filosofia:
Passagem do conhecimento de mundo legado pelos antepassados para um questionamento de o que é o mundo.
                    (mundo – natureza – physis)

Filósofos pré-socráticos: 
Perguntas sobre o mundo e sobre questões cotidianas respondidas com observações, reflexões e “experimentos”.
Tales de Mileto (625?624?-558?556? a. C.)
Tido como  o primeiro a fazer questionamentos sobre a Physis e dar respostas como, por exemplo, “a água é o elemento principal do Universo do qual derivam todas as coisas”. Tido como o primeiro que teria ido além dos ensinamentos dos antepassados procurando obter suas próprias respostas.
Também o conhecemos pelo Teorema de Tales em Matemática.

A palavra Filosofia:
Palavra atribuída a Pitágoras (580?578?-497?-496? a. C.):
“Não sou sábio. Sábio só Deus. Eu sou apenas amigo da sabedoria” (philos sophos).

Apesar dos questionamentos e busca de respostas próprias, entre os Gregos mantém-se uma convivência entre o conhecimento mítico-vivencial e o conhecimento filosófico.

Sócrates (469-399 a.C.) volta-se para o interior do ser humano, para episteme e a ética e não só o conhecimento do mundo.
Platão (428-348 a.C.) – discípulo de Sócrates - valorizava a Geometria – fundou a Academia.
Aristóteles (384-322 a.C.) – discípulo de Platão - iniciou várias áreas de Estudo:
Física – Metafísica – etc.

Algumas palavras em Conhecimento e Ciência:

A palavra Teoria: (em Platão) significa observar, sem participar, os rituais dos mistérios (de Elêusis, por exemplo).
A palavra Techné: equivalente a arte e habilidade, não exatamente a técnica.

Epistemologia:
- Estudo do Conhecimento.
- Estudo de como se dá o processo de Conhecimento.
- Parte da Filosofia que estuda a elaboração do Conhecimento.
- Conhecimento do Conhecimento.

O Conhecimento científico como o conceituamos, além da precedência da Ciência dos Gregos, pode ter se iniciado na própria Idade Média.
Por exemplo, Robert Grosseteste (1168-1253), estudioso de Oxford, fez uso da Matemática e experimentos. Foi Mestre de Roger Bacon (1214-1294).
Ambos estudaram Óptica. Inventaram lentes – óculos.
Método: “observação – hipótese – experimento”.

Fim do século XVII:
“Querelle des Anciens e des Modernes” no mundo das Artes.

Século XIX – “modernidade” (Revolução Industrial).
Século XIX - Romantismo.

Século XX – Modernismo.
Após 1950 – Pós-Moderno (Lyotard)
                  - Hipermoderno (Lipovetsky)

Movimento anticientífico (antimoderno?)
A partir do início do século XIX:
Ciência vista como ameaçadora à Natureza e à Humanidade. (Frankenstein, etc.)
Progresso como ameaça.
O homem do Renascimento não teria continuado no homem da Revolução Científica?
Romantismo: nostalgia da Idade Média.
Auguste Comte (1798-1857)
Positivismo: Leis científicas a partir de observações e fatos.
Fundador da Sociologia.
(após a Mecânica Newtoniana e durante a visão de progresso do século XIX)

1900 – Física Quântica – Max Plank.
1905 – Teoria da Relatividade de Einstein.

Primeira Guerra Mundial significou importante recorte na Cultura Ocidental.

Anos 1920 – Princípio da Incerteza de Heisenberg.

Gaston Bachelard (1884-1962)
Questiona o Positivismo de Auguste Comte, discutindo a mente que produz ciência.
Propõe uma descontinuidade na História da Ciência.
1934 – “O novo espírito científico”
1938 – “A formação da mente científica”
(distância entre senso comum e conhecimento científico) – “psicanálise”.

Georges Canguilhem (1904-1995)
1943 – “O normal e o patológico”
1952 – “O conhecimento da vida”

Karl Popper (1902-1994)
  1934 – “A Lógica da Descoberta Científica” - racionalismo crítico  - falsificabilidade
Alexander Koiré (1892-1964) 1939 – “Estudos galileanos”.

Paradigma:
       É um termo que já existia como sinônimo de “modelo”.
       Thomas S. Kuhn (1922-1996)
“A Estrutura das Revoluções Científicas” (1962-1970).
“Considero ‘paradigmas’
as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.
O paradigma funciona como um Quebra-cabeça:
-          Só se pode fazer perguntas (problemas) dentro do modelo.
-          Só se pode fornecer respostas (soluções) dentro do modelo.
Por algum tempo, o paradigma dá conta das perguntas, no período de “ciência normal”, quando se repetem os seus métodos.
       Chega um momento em que alguém começa a formular perguntas (problemas) que não cabem no quebra-cabeça (modelo).
Esse indivíduo é considerado excêntrico, louco, de competência duvidosa, “um poeta”, etc.
O conflito pode estar na linguagem e no método,
tanto da formulação do problema quanto na busca/proposta de solução.

Disciplinaridades:
Multidisciplinaridade – Está aí desde Aristóteles.
Cada área com sua linguagem e seu método.
Interdisciplinaridade – permuta de linguagens e métodos.
Transdisciplinaridade – metalinguagem e “metamétodo”.
Inclui fatores culturais.
Na transdisciplinaridade trata-se mais de “meta-método” e “meta-linguagem”, pois ela atravessa e ao mesmo tempo se coloca do lado de fora das disciplinas, pois discute e debate os métodos não em seus detalhes, mas em seus propósitos, seus objetivos, suas filosofias.
A transdisciplinaridade tem três pilares:
1 - Níveis de realidade – não-reducionismo.
Existe a tendência de reduzir-se todo o conhecimento a um único nível de realidade. Por exemplo, achar-se que a biologia molecular explica tudo; ou que tudo se reduz à Física. Na verdade, no que diz respeito ao ser humano (ou mesmo nos seres vivos), embora a biologia molecular seja muito importante, existem outros níveis de realidade que não podem ser esquecidos, o nível celular, o tecidual, o dos órgãos, dos sistemas, o clínico, mas também o social, o cultural, etc.
2- Complexidade – não-reducionismo.
Edgar Morin diz que não se deve confundir complexidade com complicação. A complexidade também é não reducionista porque em vez se ir em um sentido cada vez mais restritivo do enfoque do estudo científico, sugere que a ciência se disponha a colocar luz nos fatores deixados à priore à margem de seu escopo. 
3- Terceiro incluído – concilia paradoxos.
Na Lógica Aristotélica, que é aquela que ainda configura o nosso pensamento, existe a descrição do “terceiro excluído”. Na afirmação “Ou este homem é Sócrates, ou não é Sócrates” não há uma terceira possibilidade; seria ilógico supor alguém que fosse e não fosse Sócrates ao mesmo tempo. Já o “terceiro incluído” implica na possibilidade de aceitar um paradoxo, uma contradição, por exemplo, situando esses fatores em um outro nível de realidade onde os oponentes possam coexistir. Assim, na Física Quântica a solução do paradoxo partícula-onda se resolve na conceituação de quantum. Ou ainda um exemplo mais simples. As duas frases: “Todas as pessoas são iguais” e “Todas as pessoas são diferentes”, se contempladas em apenas um nível de realidade, podem realmente ser incompatíveis, enquanto que, se forem analisadas dentro da Complexidade, podem coexistir.








 




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