Aula 2 - Parte 2 - O Mito
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves
A palavra “mito” é uma palavra bastante usada no dia a dia, principalmente pela mídia,
mais frequentemente com o sentido de algo ilusório, inventado enganosamente, ou mesmo como alguma forma de mentira.
O sentido “correto” das palavras é relativo e dependente de várias circunstâncias. O uso das palavras também constrói seus sentidos. Por outro lado, isso não desvaloriza a busca do sentido original das palavras. Esse sentido original pode ser revelador de valores próprios da comunidade dentro da qual surgiram esses termos. Deve-se ressalvar que o entendimento do sentido original das palavras por vezes pode ser apenas aproximado, na medida em que a distância no tempo possa dificultar essa compreensão em profundidade.
Assim, o mito como uma “interpretação falsa” do real pode conduzir ao entendimento de que o melhor entendimento do real vai conduzir do mito à realidade. Desse modo, há trabalhos que se subintitulam “do mito á realidade”, como se fosse uma caminhada da escuridão para a luz, ou da ignorância para o conhecimento.
Em nosso estudo dos mitos, podemos dizer que, dependendo de a qual mito se referir, podemos dizer que o Mito talvez seja “mais real” do que aquilo que esteja sendo chamado de “realidade”.
Muitas vezes, com o passar do tempo, o Mito fica e aquilo que pensamos ser a Realidade passa, dependendo de qual seja o conceito ou o discurso a respeito do Real.
Comumente ao Real que é aceito como “científico” dá-se o atributo de “verdade”.
Já ao Mito que é “condenado” como “não científico”dá-se o atributo de “mentira”.
Apesar de todas essas considerações, é conveniente que aceitemos o sentido da palavra mito em seu uso cotidiano, bem como em outros sentidos, lembrando-se de que se deve observar o contexto em que esse termo está sendo utilizado.
“Mito”, em seu sentido originário do grego, pode dizer respeito a “narrativa”, “conto”. Oportunamente voltaremos a esse sentido original da palavra.
Agora queremos adiantar aqui alguns aspectos a respeito da ideia de “Mito Moderno”, como mais um sentido da palavra mito.
“Mito Moderno” diz respeito à pessoa ou entidade, real ou imaginária, que se torna uma espécie de “personagem” da sociedade, em geral veiculada pelas diversas formas de mídia.
Ou ainda a uma pessoa que se torna uma espécie de “marca” com um “valor agregado”.
Implica em certa carga de poder, em vários sentidos, e de fantasia.
Essa entidade dá nova forma e nova roupagem a significados que perderam sua expressividade na cultura moderna e pós-moderna.
Esta nova forma e nova roupagem não necessariamente recuperam a carga simbólica e emocional que acompanhava certos fenômenos antigos associados a mitos.
Conforme Mircea Eliade existem figuras “modernas” que substituem os antigos mitos, mas que não têm a mesma profundidade e conteúdo destes.
Nesse contexto, convém lembrarmos a origem dos termos “Moderno” e “Modernidade”.
O mais remoto que podemos ir em relação a “moderno” é com Cassiodoro, um estudioso romano do século VI. Após ter sido exilado por anos de Roma, ao voltar, Cassiodoro constatou que ninguém mais entendia a língua grega; percebeu estar vivenciando uma grande mudança social e afirmou estar vivendo em “tempus modernus”, ou seja, em tempos de mudança, de transformação, já que modo dizia respeito a “momento”. De maneira similar temos atualmente a palavra “moda”. Estar na moda é estar “no momento”.
A palavra modernus continuou sendo usada na Idade Média com esse sentido de atualidade ou momento, acompanhando certo dinamismo em discussões entre estudiosos ocorridas nesse período, contrariamente à impressão habitual que se tem da Idade Média.
Um discurso mais corrente sobre a ideia de “moderno” ocorre principalmente a partir do Iluminismo e pós-Iluminismo.
No século XVIII surgiu na França a discussão chamada de “Querelles des anciens e des modernes” , ou seja, um debate a respeito do valor da imitação dos modelos clássicos gregos e latinos na arte.
Na virada do século XVIII para XIX Hegel disse: “os novos tempos são os tempos modernos”.
Assim, nesse período há a referência a “modern times” ou “temps modernes” para se referir aos 3 séculos anteriores. Localiza-se então em torno do ano 1500 a transição entre a época medieval e a época moderna.
A data de 1453, ano da queda do Império Romano do Oriente, mais especificamente a dominação de Constantinopla pelos turcos otomanos, é tida como um marco delimitador do início da Idade Moderna, com a migração de sábios gregos para o Ocidente, além de passar a haver uma dificuldade ao comércio com o Oriente pela rota de Constantinopla.
Acompanhando esse processo tem-se o incremento das navegações, que já haviam se iniciado em 1416 com o Infante Dom Henrique de Portugal e sua lendária Escola de Sagres. Em se tratando de mitos antigos e modernos, pode-se dizer que o Infante Dom Henrique e a Escola de Sagres são importantes entidades históricas com forte significado mítico entre o antigo e o moderno. Comumente ouve-se que não existiu uma Escola de Sagres no sentido de uma instituição formal com uma edificação e cursos regulares. Na verdade a Escola de Sagres dizia mais respeito a um agrupamento de estudiosos e conhecedores da navegação. Os feitos dessa Escola foram tão significativos que por si só carregam um caráter mítico de um processo técnico e científico historicamente paralelo ao que ocorria no Renascimento italiano.
Alguns outros eventos que acompanham a Idade Moderna, além das navegações e a Descoberta das Américas são o Renascimento e seus desdobramentos bem como o movimento de Reforma religiosa.
Economicamente foi importante o Mercantilismo e a instalação da “escravidão moderna”. Ora, podemos questionar se essa “escravidão moderna” seria o reviver de outro aspecto dos antigos gregos e romanos, além daqueles realçados pelo renascimento das artes e ciências da Antiguidade.
Assim, o que seria ser novo ou antigo? Ou ainda ser moderno?
Os termos “novo”, “antigo”, “moderno” também carregam certos valores agregados que têm algum caráter mítico e fazem um jogo de palavras e sentidos, ou seja: nem sempre aquilo que recebe o adjetivo de “novo” é necessariamente “inovador”.
Continuando o debate sobre o Moderno, devemos citar que o termo “Modernidade” foi consagrado pelo poeta francês Baudelaire em meados do século XIX referindo que:
“A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente”.
Já a noção de “Pós – Moderno” vem principalmente após a obra de Jean François Lyotard de 1979 intitulada “La condition postmoderne”.
O Pòs Moderno diz respeito à era após 1950 onde a Tecnologia comanda a Ciência, o especialista inabilita o generalista. Reforça-se o debate entre “eficiente” e “não eficiente” e não mais entre “verdadeiro e falso” e entre “justo e injusto”. Assim reforça-se a ênfase nos resultados e relativiza-se os meios para buscar esses resultados.
Antes desse período havia certa visão “iluminista” de Ciência, no sentido de buscar a verdade. Essa visão passa a ser substituída por uma Ciência utilitarista que possa ser eficiente em busca dos resultados desejados.
No período Pós-Moderno o conceito iluminista de “Estado-Nação” passa a ser substituído pelo de “Globalização”. No fim do século XX a Globalização acentuada pelo seu caráter econômico passou a ser contestada por movimentos anti-globalistas diversos.
No início do século XXI o processo pós-moderno parece passar por uma crise e transição para algum outro formato de correlações entre estruturas e poderes no mundo.
De qualquer forma, este período ainda se faz marcar por um “atual fugaz”, ou ainda “um presente porvir”. Acentua-se o suceder de modismos e o mito da moda. Passa-se de “marcas de grife” para a “cultura de grife”, de modo que até mesmo a Ciência tem seus modismos e suas marcas, com certos assuntos enfocados com glamour pela mídia, mesmo que seja eventualmente uma doença.
Deve-se ressalvar que há autores que discordam do pós-moderno, achando que é apenas um desdobramento do moderno, ou mesmo discordam da noção de moderno.
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