Curso “Humanização da Medicina e seus Mitos”
Aula 1 – Humanização – Anthropos e Homo sapiens
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves
Passamos a discutir temas dessa natureza em 1985, na Escola Paulista de Medicina, quando iniciamos um “Grupo de Discussões sobre Humanismo e Saúde”. A partir desses encontros escrevemos, em 1988, o capítulo “Uma visão fenomenológica da Medicina”, no livro “Vida e Morte – uma visão fenomenológica”.
Essa atividade desdobrou-se em outros projetos e atividades nos anos seguintes.
Os termos “humanização e desumanização” começaram a ser usados na área de saúde, no Brasil, nos anos 1990, com alguns antecedentes nos anos 1970-1980. Em outros campos há o uso desses termos desde o século XIX e início do século XX.
Atualmente faz-se o seguinte questionamento:
Com todo o avanço da Medicina,
Com o aumento do tempo de vida,
Com as facilidades de hoje,
Por quê se fala tanto em
Desumanização da Medicina?
Alguns dizem que se a Medicina diz respeito ao ser humano, então ela já é humanizada por si só e não há o que humanizar.
Sendo assim, essa questão é um mito?
Ou existe um mito da humanização e desumanização em saúde?
Qual tipo de mito?
A mitologia teria algo a dizer sobre essa questão?
Na década de 1990 no Brasil, com as grandes filas de espera para atendimento nos hospitais e suas conseqüências iniciou-se o discurso:
“A Medicina está desumanizada”.
“A Medicina precisa ser mais humanizada”.
O Verbo “humanizar” implica em “tornar humano”. Ora, tal afirmação leva a pensar que há algo ou alguém “menos humano” ou “não humano”, produto da “desumanização”.
A sociedade adota novas palavras na medida em que modificam-se as dinâmicas sociais.
Por exemplo, observamos o fenômeno do “emergente”:
O antes chamado país subdesenvolvido, ou país de terceiro mundo, passou depois a ser chamado de país em desenvolvimento e atualmente passou a país “emergente” no contexto da assim chamada “globalização”, que também é uma palavra mais utilizada nas duas últimas décadas.
Assim também o “novo rico” na sociedade passou a ser chamado de “socialite” emergente.
Novas doenças agora também são doenças “emergentes”.
Somos surpreendidos pelo fenômeno do “emergente” a todo momento e esse discurso pode ser uma expressão do período pós-moderno, usada não só pela mídia, mas também pela Ciência.
O Emergente evidencia-se por uma palavra, ou imagem que velozmente cria ou se torna uma marca passageira ou duradoura.
De modo similar têm-se o binômio “humanização-desumanização” em saúde.
A questão do “humano” remete-se à ideia grega de Anthropos ou à conceituação científica de Homo sapiens.
Para avaliarmos esse aspecto podemos ver outros termos similares a humanização:
São Humanismo e Humanitarismo.
Humanismo é um termo surgido no período do Renascimento e diz respeiro a um Movimento dos indivíduos que reavivaram o conhecimento clássico e a arte clássica – (se é que se possa chamar de “movimento”).
Renascimento ou Renascença ocorreu nos séculos XIV, XV, XVI e corresponde mais a uma invenção ou concepção dos pensadores iluministas e pós-iluministas (sec. XVIII e XIX), que assim também “inventaram” a Idade Média como “Idade das Trevas” e o Renascimento como o fim desse “período obscuro”.
Assim também a idéia de um movimento chamado “Humanismo”.
É certo que Escritores como Petrarca – (1304-1374) e Boccaccio – (1313-1375) estavam atentos a mudanças conceituais entre os estudiosos, mas não tinham a noção plena do processo que depois foi consolidada por estudiosos de séculos seguintes.
O Humanismo dizia respeito à afirmação do filósofo grego Protágoras (485-410 a.C.):
“O homem é a medida de todas as coisas”.
No período do Renascimento há um reavivamento dos conhecimentos dos gregos, de modo que há um buscar do Anthropos grego.
Um dos grandes nomes desse período é justamente Leonardo da Vinci (1452-1519).
Este Artista de todos conhecido também era um minucioso cientista (se bem que este termo surge no século XIX). Ele estudou o corpo humano em detalhes e, de certa forma, lançou o “dividir para entender”, ou “separar em pedaços para estudar”.
Assim também o médico Vesalius (1514-1564) torna-se o “pai moderno” da Anatomia com processo de estudo similar.
Teve-se então ganhos e perdas: Ganhou-se em conhecimento do detalhe, mas perdeu-se no todo.
Portanto, o processo de “dividir para entender” não foi apenas obra de Descartes.
Já o Homo sapiens ( homem sábio) foi um conceito feito no esteio da classificação dos seres vivos feita pelo médico Lineu (1707-1778) (no mesmo período dos iluministas).
Assim, o ser humano foi classificado entre os outros seres vivos, dentro de um entendimento científico.
Há um aparente ganho pela inserção no processo científico, mas pode ter havido também perdas, se essa coneituação for usada para restringir a complexidade do que significa “ser humano”.
A palavra Humanitarismo é equivalente a Filantropia:
Philos – amigo Anthropos – homem
No Ocidente o Humanitarismo tem origem judaico-cristã.
No Antigo Testamento constam máximas como: deve-se cuidar do pobre, do doente, do órfão, da viúva, do estrangeiro. Esse discurso diz respeito a uma postura de proteção aos mais fracos.
No Novo Testamento a parábola do Bom Samaritano, que socorre um individuo caído que pertence a uma parte do povo que não era simpática aos samaritanos, torna-se um dos padrões de atitude humanitária.
Até os primeiros séculos d.C. os “hospitais” serviam para soldados feridos. Nos primeiros séculos da Era Cristã, senhoras romanas cristãs começaram a criar hospitais para recolher doentes pobres.
De certa forma, As Santas Casas que surgiram em Portugal no século XV são sucessoras desse tipo de estabelecimento.
Na segunda metade do século XIX a medicina começa a correr contra o tempo, após a criação da amestesia em 1846 e as primeiras noções de antissepsia na década de 1860.
Assim, começam noções de urgência e emergência, concomitante ao crescimento das cidades, á mecanização da sociedade, e ao confronto entre a cidade e o indivíduo.
Entre o Anthropos e o Homo sapiens está a “pessoa”. Esse termo deriva dos termos per sona (latim) – Maskara (teatro grego).Ou seja, (soar através) ... da máscara.
Aí se tem então “personalidade”, “individualidade”, “identidade” como atributos da pessoa, que na Era Moderna será confrontada de diversas maneiras em relação ao seu estado de “ser humano”.
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