Este curso está
inserido no Setor de Neuro-Humanidades da Disciplina de Neurologia da Escola
Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo.
O Setor de
Neuro-Humanidades trabalha com as intersecções entre Neurociências e Ciências
Humanas. No sentido amplo do termo, Neurociências, no plural, é uma designação
que engloba os diversos campos de estudo com o prefixo “neuro”, além da
Neurociência, no singular, propriamente dita, que se refere mais propriamente à
Ciência Básica de Pesquisa assim denominada.
Então,
Neuro-Humanidades diz respeito a interfaces entre áreas “Neuro” e os campos de
estudo como Filosofia, História, Sociologia, Antropologia, Letras, Literatura, Geografia.
Portanto, trata-se de um campo “interdisciplinar”.
Neste campo,
trabalhamos com algumas ideias básicas que nos orientam. Para nós não existe
processo ou evento humano que seja “a-histórico” ou “a-psicológico”, ou seja,
não se pode desvencilhar qualquer campo do Conhecimento da História e da
Psicologia. A história humana e a psique humana estão em qualquer processo
humano. Afirma-se isso porque, eventualmente pensa-se que a Ciência
(principalmente as Hard Sciences) seria algo que se faria por si,
acumulando conhecimentos científicos, independentemente da história humana e da
psique humana, sem depender de outros fatores que não seus próprios parâmetros.
Também em
Neuro-Humanidades colocamos que “não temos nem a única nem a última palavra
sobre qualquer coisa”. Os diversos campos de Conhecimento podem usar os mesmos
termos para significar coisas diferentes dentro de linguagem e contextos
próprios de cada um desses campos. Deve-se situar o contexto e outros fatores
dentro dos quais se esteja inserindo determinado termo ou conceito.
Além disso,
frisamos que não temos todas as respostas. Se ao fim de determinado estudo
chegarmos a formular alguma pergunta, já pode ser um avanço em nosso estudo. O
filósofo Henri Bergson dizia que quando formularmos nossos próprios problemas,
seremos livres. Ele quis dizer que, em geral, somos educados para trazer
soluções a problemas que já nos chegaram com esse título, “problema”, e já
assim estruturados. Precisaríamos aprender a verificar se realmente se trata de
um problema e estruturar a configuração do problema. Assim também as perguntas.
Ao se estudar algum assunto, não necessariamente deve-se chegar a todas as
respostas, mas eventualmente descobrir ou propor caminhos, quais as perguntas a
serem feitas.
Em
Neuro-Humanidades interessa-nos mais os vínculos, as ligações, os processos
entre as coisas, do que as próprias coisas. Mais os processos do que os fatos.
Em nossa cultura temos forte influência do Positivismo do século XIX. A ciência
positivista baseia-se na constatação de fatos e que esses fatos seriam
indiscutíveis e que se caminha de comprovação em comprovação crescente na
acumulação de conhecimento. Mas, a formação atual do Conhecimento,
principalmente do Conhecimento Médico vem a partir da Medicina Baseada em
Evidências, evidências essas que não são necessariamente fatos, mas
decorrências de estudos diversos associados a Bioestatística e Epidemiologia. Na
interface de Neuro e Humanidades, estando focados mais nos processos do que nos
fatos, procuramos estudar elementos menos frequentemente elencados nos estudos
habituais.
Finalmente, a
“linguagem”. Para nós a linguagem é fundamental, não só a linguagem verbal, mas
todas as formas de linguagem. No entanto, a linguagem verbal assume importância
singular, na medida em que com ela se constrói toda forma de Conhecimento, incluindo
o conhecimento “Neuro”. A linguagem precede até mesmo a noção de conceituações
neurológicas básicas. Antes vem a linguagem, depois vêm os conceitos. “Ser
Humano, Linguagem, Cultura” são elementos associados desde o início de sua
existência. Cada um desses três fatores está fortemente e indissoluvelmente
ligado aos outros dois. Comer, beber,
dormir, procriar são atividades básicas das diferentes espécies animais; mas no
ser humano cada um desses fatores está sempre marcado pela Cultura, por elementos
culturais; a Cultura que é fruto da convivência comunitária de seres humanos
desde os primórdios em que se possa referir a “ser humano”. A conceituação de
“ser humano” sempre implica em “comunidade”, de onde provém “a cultura”.
Associada a ambos está a “linguagem”.
Assim, a linguagem
é a principal ferramenta, mas também pode ser obstáculo ao Conhecimento. Sua
capacidade, suas possibilidades são também seus limites.
Para ilustrar isso
podemos lembrar uma passagem de Thomas Kuhn em sua coletânea póstuma “Depois da
Estrutura”. Ele, que tinha formação como físico, ao estudar Aristóteles, achou
estranho o conceito aristotélico de “movimento”. Em primeiro momento achou que
Aristóteles nada entendia de Física. Mas depois ele veio a entender que
“movimento” para Aristóteles tinha outro sentido: para ele, por exemplo, a
metamorfose na natureza, de larva em borboleta, era um “movimento”. Ou seja, a
ideia de movimento englobava também formas de transformação. A partir daí, Kuhn
passou a respeitar Aristóteles e esse foi um dos elementos que o levaram a
configurar sua ideia de “incomensurabilidade de paradigmas”, na medida em que
eles usem diferentes linguagens e métodos.
Outro aspecto
sobre a linguagem diz respeito à importância da metáfora para o Conhecimento. A
metáfora permite a passagem de palavras entre diferentes campos do
Conhecimento, mas com sentidos associados, não exatamente os mesmos de seu
campo de origem. Podemos pensar, por exemplo, nas diversas passagens da palavra
“célula” desde sua origem como “pequena cela” quando vista pela primeira vez
pelo microscópio por Robert Hooke, que associou o que via a “pequenos cômodos”
que chamou então de células. Daí para diante esse termo percorre diversos
campos do Conhecimento e mesmo da linguagem coloquial.
Tendo visto esta
introdução a respeito de alguns conceitos básicos para os estudos em
Neuro-Humanidades, passemos então a falar da Medicina Narrativa como uma
prática interdisciplinar na área da Saúde.
Ao falarmos de
“interdisciplinaridade” devemos entender esse termo. Ele costuma ser estudado
com os termos Multidisciplinaridade e Transdisciplinaridade.
Multidisciplinaridade é uma associação de disciplinas que segue um modelo praticamente
iniciado com Aristóteles, embora ele mesmo não usasse esse termo de “multidisciplinaridade”;
essa é uma conceituação que surge no século XX, a respeito do Conhecimento no
sentido amplo do termo. Na Multidisciplinaridade, cada disciplina fica com seu
método e sua linguagem, havendo apenas algum contato entre disciplinas. É o
modelo tradicional, convencional da maioria das escolas. Já a
interdisciplinaridade implica em uma permuta de linguagens e métodos.
Devemos notar que
a transdisciplinaridade não é um degrau acima de multidisciplinaridade e
interdisciplinaridade. A transdisciplinaridade transversaliza as outras duas
formas de associação de disciplinas, de modo que trabalha mais com uma espécie
de metalinguagem e de “metamétodo”, do que com o próprio discurso intrínseco a
cada área, ou mesmo com o âmago de seus métodos. Na transdisciplinaridade,
também a Cultura, ou a Culturalidade sempre é levada em consideração.
Visto isso,
afirmar que a Medicina Narrativa é uma área interdisciplinar implica em indicar
que ela dá espaço à permuta de linguagens e de métodos entre diferentes áreas
do Conhecimento ligadas à saúde. Ao falarmos área da Saúde também podemos
ampliar essa designação para saúde/doença, na medida em que ambas têm sua
fundamentação de forma mútua, embora não sejam exatamente equivalentes de forma
inversa.
A ideia de
saúde/doença surgiu para o ser humano a partir da constituição do próprio “ser
humano”, naqueles primórdios já referidos, em que há ser humano, linguagem e
cultura surgindo associados. Dessa forma, a percepção de “sofrimento e dor”
passou a ser algo presente, a partir do momento em que se tem “ser humano no
mundo”.
Pode-se
eventualmente alegar que os animais também sofrem; o que é certo. Mas, mesmo
esta conceituação vem do ser humano que pensa a esse respeito. Assim, a
percepção e elaboração de alguma coisa que passe a ser nomeada como “sofrimento
ou dor” é algo próprio do ser humano. “Nomear” é algo próprio do ser humano,
como se lê no Gênesis a determinação para que Adão nomeasse todos os animais.
Esse atributo verbal é bastante próprio do ser humano. Assim também no binômio
saúde/doença temos a presença da linguagem.
Frisamos que sempre ensinamos que “não
existem doenças, existem doentes”. Isso significa que doenças são resultado da
abstração médica a partir de sinais e sintomas. Sinais e sintomas similares
podem significar uma doença em um século e outra doença em outro, porque ambas
são construídas a partir do contexto histórico e do conhecimento do tempo presente
de cada uma.
Assim como o ser
humano “nomeia” com sua linguagem verbal, também a partir da percepção de
outras linguagens, ele discorre “verbalmente” a respeito dos eventos que o
cercam. Isso usualmente, e inicialmente, a partir de noções de espaço e de
tempo. Sempre o ser humano narra sucessivamente e comparativamente os eventos
de sua vida e de sua comunidade desde os tempos primordiais. Desse modo,
configuraram-se as narrativas. Entre elas, as narrativas das doenças. Talvez,
paradoxalmente, as narrativas de doenças tenham precedido as narrativas de
saúde, já que na medicina as noções de doenças são abstrações. No entanto, em
tempos primordiais as “doenças-narrativas” tinham certos significados dentro do
mundo cotidiano dos seres humanos, de um modo razoavelmente diferente da moderna
conceituação científica de doença.
Deixemos este
debate para outra oportunidade. Agora comentemos um pouco sobre Medicina
Narrativa.
O termo Medicina
Narrativa foi criado pela Profa. Dra. Rita Charon, professora de Medicina na Columbia
University em Nova York, no ano 2000. A criação desse termo veio após longa
vivência como médica e professora, bem como a partir de contato com a área da
Literatura, onde fez doutorado. No ano de 2009, ela teve aprovado o programa de
Mestrado em Medicina Narrativa na mesma Universidade.
Um aspecto que devemos
ressaltar inicialmente sobre a Medicina Narrativa são os termos em português História
e “Estória”. “Estória” não é mais aceito em português há décadas.
Mas já foi equivalente aos termos em inglês “history” e “story”. O primeiro
para a história, estudo de como foi o transcorrer dos povos no tempo, com seus
processos sociais, políticos, etc, e o segundo para os contos, os romances, os
enredos. Eventualmente ambos se cruzam, ou se juntam. Com essa diferenciação,
pode-se entender melhor quando estamos tratando, por exemplo, de “estórias” de
um paciente, ou de sua história clínica. Ou ainda em literatura, quando se
trata de história (history) ou de “estória”.
Conforme a Profa.
Dra. Rita Charon, da Universidade de Columbia, a Medicina Narrativa é uma
medicina praticada com competência
narrativa para reconhecer, absorver, interpretar e ser tocado pelas histórias
(estórias) de doenças (e de doentes).
A Medicina Narrativa busca:
- Aumentar a
capacidade de percepção clínica.
- Levar a um
cuidado mais humano, mais ético e mais efetivo.
A Medicina Narrativa provém dos seguintes campos:
- Humanidades e Medicina
- Cuidados Primários em Medicina
- Narratologia contemporânea (que é o estudo de estruturas e de elementos das narrativas)
- Estudos de relação médico-paciente.
- Literatura e Medicina
- Cuidado centrado no vínculo indivíduo/comunidade/profissional da saúde
O estudo da Medicina diz respeito ao estudo do ser humano. Tudo o que se estuda em Medicina, e além dela, vai, gradativamente, configurando o que se
entende por “ser humano”.
Profissionais da saúde precisam de meios para:
- Singularizar
o cuidado ao paciente
- Reconhecer/perceber
a ética profissional e os deveres pessoais ao doente
- Produzir
“correlações terapêuticas” com pacientes, entre profissionais e com o público.
Hoje em dia, a falta de singularidade, humildade, responsabilidade, empatia pode ser provida, em parte, pela Medicina Narrativa.
A atividade da medicina narrativa é compatível com uma prática
multiprofissional.
O que é multiprofissional pode ser
multidisciplinar ou
interdisciplinar. Cada um desses conceitos tem suas particularidades e tem suas
intersecções.
Multidisciplinaridade: é o que
já está presente desde Aristóteles. Corresponde a cada
área do Conhecimento com sua linguagem e seu método.
Interdisciplinaridade: permite
uma permuta de linguagens e de métodos, ou ainda a adoção da mesma linguagem e
método por diferentes campos do Conhecimento.
Transdisciplinaridade: diz respeito mais a uma “metalinguagem” e “metamétodos”, ou seja,
transversaliza diferentes campos do Conhecimento, mas ao mesmo tempo sem o tipo
de envolvimento da interdisciplinaridade, já que aborda “linguagem e método” do
“lado de fora”, ou seja sem submeter-se às condições e normas de linguagem e
método dos campos. A transdisciplinaridade também inclui “culturalidade”, ou seja, admite no
processo de Conhecimento as variáveis culturais. Também a
transdisciplinaridade, por suas características, concilia paradoxos.
São 3 os pilares da transdisciplinaridade:
1 –Níveis de Realidade.
Deve-se admitir que a abordagem do Real pode acontecer em diferentes
níveis de realidade, de modo que em cada nível há condições próprias. Não se
pode reduzir todo o fenômeno a apenas um nível de realidade. Assim, este pilar
também propõe uma atitude de “antirreducionismo”, ou “não
reducionista”. Se, por exemplo, levarmos para o âmbito do ser humano, podemos
ver que “ser humano” não se reduz ao nível da realidade biológica, mas há
outros níveis de realidade, como cultural, social, entre outros, que vão compor
a realidade do indivíduo.
2 – Complexidade.
A Complexidade também é “antirreducionista” ou “não reducionista”.
Uma forma de entender a complexidade é a frase: “O todo é mais do que a
soma das partes”. Assim, mesmo que se
juntem todas as partes não se tem um todo. Isso porque o todo implica em alguma
coisa a mais do que apenas se ter as partes. Passa a estar presente também o
vínculo entre as partes, os fatores que unem as partes, a energia, os
desdobramentos provenientes da existência desse todo que articula essas partes.
3 – Terceiro incluído.
O terceiro incluído segue uma
lógica diferente do “terceiro excluído”. Neste, em uma configuração lógica onde
A e B não se correlacionam, o terceiro excluído corresponde a um “não A” e “não
B”.
Já no terceiro incluído, “não A” e “não B” podem implicar em “um C”, que
possa harmonizar “não A” e “não B” em convivência simultânea. Os autores dão
como exemplo dessa situação a conceituação física quântica de “quantum”. Isso
acaba resolvendo a dicotomia entre as possibilidades de um fóton ser partícula
ou de ser onda. No “quantum” essas duas possibilidades convivem em um nível de
realidade acima de ambos. Assim admite o que é um paradoxo em outra instância. Vai além dos pares de opostos.
Como uma espécie de quarto pilar temos a culturalidade já citada.
Ainda sobre a Medicina Narrativa, pode-se dizer que também é:
- Um reforço
à anamnese tradicional
- Uma
recuperação do valor dessa anamnese no século 21.
- Educação e prática
de uma “escuta focada” e de “um olhar clínico” que direcionam as “decisões
baseadas em evidência”.
Protocolos médicos são boas ferramentas em mãos de quem raciocina a
respeito de sua aplicação, adapta-os “à singularidade do
paciente e de sua cultura”.
Isso é possível a partir de uma boa anamnese, e do exercício narrativo.
A Medicina Narrativa pode aprimorar no profissional de saúde a percepção
de quando e quanto deve acrescentar de dados à anamnese, permitindo conhecer
aspectos da vida do paciente que podem interferir no processo saúde/doença, e
usualmente passam despercebidos.
Além dos diversos profissionais de saúde, em seus aspectos interdisciplinar
e transdisciplinar a Medicina Narrativa contempla espaços e interfaces com
diferentes áreas do Conhecimento.