Mito e Modernidade
Prof. Dr. Afonso Carlos Neves
O que passou-se a chamar de “Modernidade” foi decorrente de vários processos ocorridos entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Tais processos são decorrentes de outros anteriores, mas vamos nos deter aqui a partir desse período.
A Revolução Industrial e as novas configurações políticas em vários países conduziram a um novo desenvolvimento das cidades, com novas vivências e visões a partir do “urbano”.
A Ciência ainda não tinha se tornado propriamente “profissional”, mas tinha o apoio dos detentores do poder, de modo que se aprimorava.
A eletricidade, “descoberta” e nomeada por Gilbert no século XVI, ganhou um novo patamar após os trabalhos de Galvani no século XVIII.
A possibilidade de manipulação da eletricidade e seu poder sobre corpos mortos, entre outras proezas, impressionaram os estudiosos que passaram a creditar a esse fenômeno um dos meios de dominar a natureza, incluindo a morte. Assim, a eletricidade seria algo como uma “desafiadora das divindades” produtoras de “raios e relâmpagos”.
Concomitantemente a esses acontecimentos, a Medicina então praticada não pode ser tida propriamente como “popular”.
Ao nos reportarmos ao passado com uma nostalgia de uma Medicina próxima das famílias e de todo e qualquer cidadão, estamos parcialmente projetando em um passado longínquo algo que não fica tão distante no tempo.
Até o aparecimento das repúblicas modernas no século XVIII, o que vivia mais próximo da camada social menos favorecida da sociedade em termos de cuidados com a saúde eram mais frequentemente “curadores” e “cuidadores” de origem popular, mas não médicos de formação universitária. Estes serviam mais frequentemente à elite da sociedade.
Um dos marcos iniciais de um “cuidar médico formal dos cidadãos” ocorreu a partir de Pinel ter passado a cuidar de Salpetrière na última década do século XVIII. Pinel, Cabanis e outros iniciam um processo de aproximação da Medicina universitária com um “cuidar” de pessoas do povo. Devemos lembrar também do então “cirurgião-barbeiro” que tinha uma papel intermediário entre a Medicina universitária e os “curadores populares”.
Esse processo de aproximação do povo de uma “Medicina republicana” ocorreu aos poucos, já que o povo já estava habituado aos “cuidadores populares”.
Assim, talvez possa ser questionada uma nostalgia de uma “medicina humanizada” se isso disser respeito a um “cuidar de qualquer pessoa”. Seria essa uma nostalgia da Medicina propriamente dita ou seria uma nostalgia dos cuidadores?
Literatura
Acompanhando a Modernidade aprimoraram-se os processos industriais facilitadores da produção de livros. Assim, instalou-se uma Literatura de consumo e diversão, bem como de informação noticiosa, de modo que passaram a circular na sociedade conhecimentos e informações as mais variadas, promovendo uma “permeabilidade” entre as diversas camadas da sociedade e entre a Ciência e os leitores de livros e de notícias.
Essa produção literária foi um dos fatores que configuraram a Modernidade.
Fotografia
Em 1926 o francês Niepce, em 1933 o francês Florence radicado no Brasil em finalmente em 1935 o também francês Daguerre desenvolveram o processo de criação da fotografia.
A fotografia trouxe uma “nova imagem” e um “novo imaginário” ao cidadão da modernidade.
É interessante que três franceses tenham desenvolvido inicialmente a fotografia, pois a Paris do Barão Haussmann configurou-se na “cidade moderna” nos padrões do século XIX, na segunda metade desse século, onde a fotografia passou a captar as coisas “acontecendo” em um instante, um momento.
Devemos lembrar que uma das primeiras aplicações práticas da fotografia ocorreu a partir de 1854 com a foto da população carcerária para o fichamento de cada criminoso. Assim, esse foi um início de controle social “moderno” que posteriormente vai atingir também os outros indivíduos.
Assim se a fotografia traz uma “nova imagem” da pessoa, também implica em um novo “olho” da sociedade.
Esse processo na instância científica, em 1860 gerou o “mítico” conceito de “optograma”. O médico Dr. Vernois formulou a hipótese de que ficaria impressa na retina de uma pessoa morta a última imagem vista por essa pessoa. Assim, seria possível, a partir da “fotografia da retina”, descobrir a identidade de um homicida.
No transcorrer da segunda metade do século XIX aprimorou-se a anestesia e a antissepsia. Tais capacidades acompanharam o processo de “corrida contra o tempo” na Medicina.
É notório que na Paris do Barão Haussmann apareceram as primeiras ambulâncias, ainda sob tração animal. A cidade moderna passou a ser hostil ao cidadão e a entrar em conflito com ele, de modo que aumentaram acidentes decorrentes desse conflito, ao mesmo tempo em que aquelas técnicas citadas se instalaram.
Em 1864 o necrotério de Paris passa a ficar aberto ao público para visitação, de modo que adquire características intermediárias entre museu e teatro gratuito, na medida em que apresentava “personagens” criados pela imprensa moderna. Essa visitação que se revestia até mesmo de um caráter lúdico foi fechada em 1907, sob protestos.
Podemos ver um rápido apanhado do reflexo desses fatores em relação à Medicina em algumas obras desse período. Assim temos:
• Frankenstein (1818) - Mary Shelley.
• Claire Lenoir (1867) - Villiers de L’Isle Adam.
Nesta obra o autor faz uso do conceito de optograma.
• O médico e o monstro (1886).
- Robert Louis Stevenson.
• O Alienista (1882) - Machado de Assis.
Vamos nos ater um pouco mais no que podemos chamar de “O Mito Moderno de Mary Shelley”.
Em 1818 Shelley escreveu “Frankenstein – O Prometeu moderno”.
É interessante notarmos que “o Prometeu moderno” é uma parte esquecida do nome da obra, mas que tem importante significado para entendermos a simbologia e a motivação dessa obra.
Na Mitologia Grega, Prometeu foi o responsável por fazer o homem de barro e por insuflar o fogo divino nesse ser, tendo sido punido por isso (e por outras causas também). Embora punido, tornou-se uma figura heróica para os humanos.
Já o Prometeu Moderno de Shelley, além de punido, fez uma criação que não deu certo.
Mary Shelley expressou em sua obra uma desconfiança do poder da Ciência.
Percy Shelley, escritor e marido de Mary, era um entusiasta da Ciência.
Já o pai (também escritor) de Mary não acreditava em ciência sem “benevolência”.
Humphry Davy (descobridor do potássio) e Erasmus Darwin (botânico) eram freqüentadores da casa de Mary na infância e tinham opinião otimista da Ciência como Percy.
Assim, observa-se uma influência do pai de Mary sobre sua visão da Ciência.
Frankenstein tornou-se uma “figura mítica moderna” e temerária referente à Ciência.
Na narrativa Frankenstein era o nome do cientista, no entanto, a “Criatura” acabou assumindo o nome do criador na popularização da história.
Em certo sentido, Frankenstein é um mito similar ao “Morto vivo” conhecido como “Zumbi”, um herói dos escravos no Brasil, que acabou se tornando um mito universalizado como uma figura de alguém suspenso entre a vida e a morte.
Embora ambos habitem, de certa forma, esse espaço entre a vida e a morte, há diferenças.
Frankenstein faz lembrar que uma pessoa é “mais do que a soma de suas partes”. O cientista tentou juntar as partes de cadáveres para fazer um todo, mas não teve sucesso.
Já Zumbi foi aquele que tido em condição de escravo, ou seja, em condição subumana, ao ser morto, não morreu. Sua figura de “morto vivo” assombra seus perseguidores.
Já a figura de Frankenstein assombra seu criador e os humanos suscetíveis às ameaças de uma Ciência desafiadora da natureza.
Portanto, esse pode ser um “Mito da Ciência desumanizante”.
Modernidade e o novo olhar
A Modernidade também condicionou outra forma de novo olhar sobre o humano.
A partir do Século XX, o Cinema, um aprimoramento da fotografia e mais do que um “teatro fotografado”, instalou-se no espaço do Teatro convencional.
Por sua vez, o teatro moderno veio do Teatro da Grécia “refeito” por Shakespeare.
Assim, Shakespeare, que no dizer de Harold Bloom teria criado a modernidade, retomou o teatro que em sua origem grega teria vindo de rituais dionisíacos.
Assim, o Cinema seria uma “versão dionisíaca moderna” da catarse teatral grega.
Desse modo, tem-se Rodolfo Valentino (1895-1926) como o primeiro Mito de Massa do século XX, arrastando multidões para seu funeral em New York.
Tratando-se de Medicina, Ciência e Cinema podemos lembrar as obras:
Gabinete do Dr. Caligari (1919) de Robert Wiene.
Dr. Mabuse (1922 e 1932) de Fritz Lang.
Metrópolis (1926) de Fritz Lang.
Obras essas que demarcaram uma Medicina ameaçadora em um período entre guerras.
Já nos anos 1960, no México, o filme “O Senhor Doutor” (1965) de Cantinflas retrata um lado bastante humano da Medicina, condizente com a visão do autor sobre a humanidade.
No fim do século XX voltam as obras que retratam uma ciência temerária em relação à Medicina como, por exemplo o filme Gattaca (1997) de Andrew Niccol.
Já o Homem Bicentenário (1999) de Chris Columbus frisa que talvez valha mais a pena morrer e permanecer humano, em vez de se tornar uma “máquina perene”. Concomitantemente a isso, na sociedade surgiam protestos em relação a “globalização econômica” glamurizada mas desumanizante.
Também a televisão entrou nas formas de retratar vínculos entre a Medicina e a sociedade.
Nos anos 1960 Dr. Kildare e Ben Casey retratavam médicos como heróis jovens próprios de uma cultura jovem pós Segunda Guerra. Concomitantemente a série “5ª Dimensão” (Outer Limits) acompanhava uma apreensão como novos poderes da ciência, com novas versões de mortos-vivos, na medida em que passou a ser possível a manutenção artificial da vida.
Nos anos 1970 a figura amadurecida de Marcus Welby substituiu os jovens, na medida em que a sociedade juvenil dos anos 1950-1960 passava a conviver com uma crise (decorrente da crise do petróleo) menos visível do que os conflitos decorrentes da Guerra Fria.
No fim do século XX, nos anos 1990 a série E.R. (Plantão Médico) trouxe os médicos para o mundo real colocando-os no mesmo dia a dia das outras pessoas, apresentando contradições entre traços algo heróicos e traços humanos.
Já no século XXI surgiram inúmeras séries sobre Medicina, como derivações de E.R, sendo “House” a série emblemática desse período, retratando, ao mesmo tempo que um elevado refinamento técnico cientifico, uma busca de House por um “humanismo perdido”, mais do que apenas alguém que seja cínico e descrente.